sexta-feira, 20 de junho de 2014

E o não-trabalho?

Antônio de Pádua Nunes Tomasi
Jornal O Tempo. Caderno Opinião, p.9 (15/6/2000)

As lutas dos trabalhadores pela redução da jornada de trabalho são históricas. No Brasil, depois da Constituição de 1988, os debates estão de volta. A crise econômica e o desemprego oportunizam as discussões. A redução criaria novos postos de trabalho, 3 milhões em todo país, calculam uns. A incorporação de mais trabalhadores ao mercado de trabalho poderia, ainda, aumentar o consumo, reaquecer a economia e contribuir para reverter o quadro de desemprego. A jornada de trabalho do brasileiro é mal distribuída. É zero para os desempregados e, devido ao uso da hora extra, é superior a 44 horas semanais para os empregados, acrescentam. Finalmente, lembram a incompatibilidade dessa jornada com o atual paradigma tecnológico.

Mas a criação de novos empregos não vai ocorrer na mesma proporção do total de horas de trabalho reduzidas, isto porque os empregadores colocam imediatamente em funcionamento mecanismos de intensificação do trabalho, sejam eles de ordem tecnológica ou organizacional. Os mecanismos continuarão a se desenvolver e, após algum tempo, poderão fazer o desemprego retornar aos índices atuais. Assim, argumentam outros, seria o crescimento econômico, que no Brasil não poderia ser inferior a 6 ou 7% ao ano, e não a redução da jornada de trabalho, o melhor instrumento de combate ao desemprego. A redução, ameaçam, levaria a uma perda da produtividade. Depois lembram que muitos setores já praticam uma jornada inferior à máxima legal permitida. Em um país pobre ou em desenvolvimento, como o nosso, o de que precisamos é trabalhar mais para recuperar o atraso, concluem.

Os debates, contudo, parecem se desenvolver em um campo muito restrito. Se as reivindicações dos trabalhadores pela redução da jornada repousam apenas na necessidade de se criarem novos postos, um retorno do crescimento econômico justificaria o seu aumento? A redução se justificaria apenas pela necessidade de se criarem novos postos?

O trabalho não mais se limita aos espaços tradicionais (fábricas, oficinas, laboratórios, escritórios, hospitais, etc.) e nem a uma jornada legal. Ele invadiu o espaço e o tempo do não trabalho. Muitas atividades desenvolvidas em casa, na rua, e mesmo durante o lazer, estão comprometidas com ele. A cada dia gasta-se mais tempo para deslocar-se até o serviço. Perde-se mais tempo nas filas dos bancos, no supermercado, etc. Como identificar tais atividades? Contrário ao que acreditavam os mais otimistas na década de 1960, o desenvolvimento tecnológico não levou a um aumento do tempo de lazer. Assiste-se, hoje, no mundo, a um aumento das atividades laborativas, mesmo se a jornada, propriamente dita, venha se reduzindo ao longo dos anos. Tempo de não trabalho é, agora, de trabalho.

E mais: os postos de trabalho tornaram-se difusos, alargaram-se e passaram a exigir do trabalhador um saber transversal. Os indicadores clássicos de qualificação são vistos com desconfiança e demanda-se saber-fazeres e condutas, até então, impensadas. Fala-se, agora, em competência. A qualificação que era tradicionalmente construída no trabalho e na formação profissional sistemática, cada vez mais, conta com outros espaços e atividades, inclusive as de lazer, para se realizar. Atividades que não as do trabalho, como classicamente definido, são reconhecidas como qualificantes. O trabalho, mais uma vez, não mais se limitando a uma jornada legal, invade a vida do trabalhador, dela se apropria, e dela faz uso.

Debater a redução da jornada pode ser, então, mais do que contabilizar o ganho de postos ou a perda de produtividade, por mais importantes que sejam. É também debater o trabalho e o não trabalho.

Nenhum comentário:

Postar um comentário