sexta-feira, 20 de junho de 2014

Desemprego e critérios de competência


Antônio de Pádua Nunes Tomasi
Jornal O Tempo. Caderno de Economia, p.8 (26/3/2000)

discurso dominante sobre a transformação vivida pelo mundo do trabalho nas últimas décadas, embalada, entre outros fatores, por inovações tecnológicas e organizacionais, tem apontado para a flexibilização das relações de trabalho como uma conseqüência inevitável do atual processo de transformação e com a qual o trabalhador deverá, doravante, conviver, e para uma necessária e definitiva mudança do perfil da mão-de-obra, especialmente no que diz respeito aos valores, às atitudes e aos comportamentos, o que ofereceu ao mundo acadêmico importantes subsídios para a construção da noção de competência.

todavia, têm sido acompanhada pela supressão, em números expressivos, de postos de trabalho em vários setores produtivos a qual, em nosso país, em vez de ativar mecanismos de criação e de proteção do emprego, se transformou em desemprego, em trabalho precário, criando um trabalhador descartável e de futuro incerto.

Parece-nos, entretanto, determinista o discurso sobre a flexibilização e tão questionável quanto ao que se refere às novas demandas relativas ao perfil da mão-de-obra. Mesmo que concordemos com mudanças nas relações de trabalho e nas demandas por competência, que importância teriam, hoje, estes discursos se não fossem os altos índices de desemprego? Afinal, é o desemprego ou são as transformações que oportunizam a flexibilização e a demanda por competência?

No plano acadêmico, o debate apenas começou. Sabemos, resumidamente, que a competência tem como referência os novos modos de organização do trabalho e recorre a uma dimensão humana, que aparentemente não se encontra contemplada pela noção de qualificação, cuja referência seria o modo taylorista de organização do trabalho. Sabemos, também, que o desemprego se constitui em uma variável importante quando no estudo das transformações, e mais, que a construção da noção de competência e a superação da noção de qualificação, como querem alguns, não se mostram tarefas fáceis.

Não obstante isto, para o mercado, o problema parece já estar resolvido, sobretudo se considerarmos alguns depoimentos: "Não basta ser qualificado, é preciso ser competente" ou, "Ninguém mais pode esperar entrar para uma empresa e nela se aposentar". Estes e outros depoimentos, expostos de forma acrítica, motivados por conceitos difusos e, não raramente, por preconceitos inconfessáveis, se limitam a propagar e a reforçar o comportamento excludente do mercado, e se furtam a questioná-lo. Assim, conseguir um emprego ou nele permanecer passa a depender de capacidades que, na prática, se mostram sujeitas a interpretações diversas.

Desfigura-se a noção de competência, quando critérios estranhos de seleção, de contratação e de avaliação, podem, nela, se esconder (membro de determinado grupo, rede de influências, relações de parentesco ou de amizade, identificação política, ideológica, entre outros). São critérios que encontram abrigo nos mercados de trabalho feudalizados, como costumam ser os que apresentam altos índices de desemprego.

É como se o trabalhador, depois de encontrar o caminho das pedras, tivesse, ainda, que adivinhar o que deseja o empregador, quando, nem mesmo este, muitas vezes, sabe o que quer. Pretender tamanha "competência" só mesmo em tempos de desemprego.

Os esforços para a construção da noção de competência podem ser detectados na literatura dedicada ao mundo do trabalho a partir dos anos 80. Suas referências mais importantes são as inovações organizacionais e as mudanças ocorridas no mercado. Sua presença no debate acadêmico confirma o esgotamento do modelo taylorista - modo de organização do trabalho que se destacou desde início do século até os anos 70, muito embora se mostre, ainda hoje, uma referência importante para grande parte dos setores produtivos-, e a preocupação em dar uma resposta ao comportamento do consumidor, mais ciente dos seus direitos, mais atento à qualidade dos produtos e serviços, o que ocorre em um ambiente cada vez mais competitivo. Confunde-se, todavia, o período de construção da noção com o dos altos índices de desemprego que se constitui em um dos maiores flagelos vividos pela humanidade neste final de século. Considerando o contexto, que implicações teriam, para o trabalhador, as demandas por competência?

Sabemos que elas emergem no rompimento do mundo do trabalho com um modo particular de gestão de suas atividades, qual seja o taylorismo. O trabalhador não será mais definido, profissionalmente, pelo posto de trabalho, mas, pelo conjunto das suas capacidades, entre elas, criatividade, tomada de decisão, participação... Enfim, capacidades que o lançariam para além da execução de operações, comprometendo-o com os acontecimentos e diferenciando-o como indivíduo. O trabalhador não se limitaria, por exemplo, a resolver problemas, mas se mostraria pronto para se antecipar a eles. A competência indica, então, o reconhecimento da sua condição humana. Capacidades diferenciadas, contudo, são apreciadas, igualmente, de forma diferenciada pelo mercado e oportunizam o estabelecimento de critérios de acesso a ele, o que pode ocorrer independentemente dos fatores que as constroem, ou dos direitos inerentes ao trabalhador. Instituem-se a exclusão e a perversidade como práticas possíveis do mercado de trabalho.

Os altos índices de desemprego que acompanham as últimas décadas do milênio viabilizam estas práticas, e tornam-nas mais visíveis. A oportunidade do emprego e a possibilidade de produzir renda estão logo ali, à mão do trabalhador que não precisa de outra coisa, senão, capacitar-se, evocar e fazer valer suas capacidades, reconstruir atitudes, comportamentos, incorporar novos valores. Ele se torna, então, responsável por sua exclusão. Tudo ocorre como se houvesse, no mercado de trabalho, lugar para todos, exceto para os incompetentes.

A capacitação profissional a todo preço, por conta e risco do trabalhador, tomando direções por vezes incompreensíveis, não tem para ele o sentido positivo de atender a um apelo nacional, nem de promover o seu crescimento profissional, mas o sentido negativo de escapar ao desemprego.

Coletivamente, o trabalhador se debate face às necessidades de manter a sua organização enquanto vê ameaçados os seus direitos e ampliadas as exigências do mercado. Desemprego e competência delineiam um mercado de trabalho em que a mão-de-obra, sempre crescente e mais escolarizada, parece se mostrar pronta para se submeter aos seus caprichos. Nunca se exigiu tanto dos trabalhadores, e tão pouco se tem oferecido em troca. 

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