sexta-feira, 20 de junho de 2014

Discutir a vida

Antônio de Pádua Nunes Tomasi
Jornal O Tempo. Caderno Opinião, p.9. (05/6/2001)  

As lutas dos trabalhadores pela redução e regulamentação da jornada de trabalho dão forma, em grande medida, às confrontações históricas entre capital e trabalho.

Por parte dos empregadores, uma das formas empregadas para ampliar a jornada de trabalho tem sido o uso da hora extra. Aceita, em princípio, como meio de contornar situações excepcionais do setor produtivo, ela acaba, na prática, sendo uma espécie de flexibilização da jornada de trabalho na medida em que se torna um procedimento rotineiro de muitas empresas. Ela se constituiria, assim, pela generalização e emprego contumaz, em um outro modo de gestão da mão-de-obra, no caso, relutante à contratação de novos trabalhadores.

Muito embora não seja tarefa fácil demonstrar de maneira precisa que a criação de novos empregos ocorreria na mesma proporção da redução das horas extras, é certo que tal procedimento contribuiria, em alguma medida, para manter, ou mesmo ampliar, a crise de emprego, fato que manteria a relação capital/trabalho pendida favoravelmente ao empregador. Não seria, contudo, difícil demonstrar a sua relação íntima com o sofrimento do trabalhador, o que já foi fartamente registrado por profissionais de saúde e acadêmicos.

Na prática, o uso da hora extra ampliaria a jornada de trabalho e, nesta medida, aprofundaria, ainda mais, a sua má distribuição: mais de 40 horas semanais para uns e zero para os outros, os que se encontram desempregados.

O que chama a atenção para o uso da hora extra, como modo de gestão da mão-de-obra, é a forma perversa com que ela se apresenta. Não obstante o desemprego e mesmo os desgastes físico e mental que a ela podemos associar, a hora extra se apresenta, muitas vezes, como uma demanda dos próprios trabalhadores. Constrangidos pelos baixos salários, eles não apenas se sentem obrigados a estender suas jornadas de trabalho como vêem com bons olhos as empresas que oferecem hora extra. Ao longo do tempo, eles acabam incorporando-a à jornada de trabalho e resistem a abrir mão dela, tornando-se, assim, parceiros de sua exploração.

Longe do debate que se restringe à criação de novos postos de trabalho, sem contudo desconhecer a sua importância, parece necessário perguntar se um maior controle sobre o uso de horas extras se justificaria, apenas, pela necessidade de se criarem novos postos.

Sabe-se que o trabalho não mais se limita a espaços tradicionais (fábricas, oficinas, laboratórios, escritórios, hospitais etc.) e nem a uma jornada legal, acrescida ou não de hora extra. Ele invadiu o espaço e o tempo do não trabalho. A cada dia, o trabalhador gasta mais tempo para deslocar-se até o serviço. Perde mais tempo nas filas dos bancos, no supermercado etc. Se podemos constatar um aumento das atividades laborativas, inclusive fora dos espaços tradicionais, imagine-se a extensão da jornada de trabalho, através da hora extra.

Discutir um maior controle sobre o uso da hora extra, assim como o da redução da jornada de trabalho, é mais do que contabilizar o ganho de novos postos de trabalho, por mais importantes que sejam, é, também, discutir o trabalho e o não trabalho. É discutir a própria vida.

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