quinta-feira, 29 de maio de 2014

Por um museu de Artes e Ofícios


Antônio de Pádua Nunes Tomasi

Jornal O Tempo. Caderno Opinião, p.8 (23/7/2000)


"Camada sobre camada, as eras passadas conservam-se na cidade até que a própria vida esteja finalmente ameaçada de sufocamento; neste ponto, num gesto claro de defesa, o homem inventa o museu." Lewis Munford, (Introdução) "The culture of cities", 1938.

De repente nos damos conta de que vivemos em um mundo completamente diferente do vivido até há pouco tempo. Novas palavras, novos objetos, novas máquinas, novas relações se impõem e mudam de forma radical e definitiva nossas vidas. Vidas, por vezes, sentidas e pensadas a partir não dos nossos ganhos, mas das nossas perdas. O mundo do trabalho é cheio delas. Perdemos conhecimentos e experiências, saberes e saber-fazeres, ofícios e qualificações, gestos, tudo encoberto para sempre pelo tempo. Memórias que se apagaram. Na Sociologia do Trabalho, entre outras coisas, tratamos das perdas. O preparo do queijo, da rapadura, o trabalho do ferreiro. Onde estão os curtumes, as ourivesarias, os alambiques de cachaça? Onde estão as casas de farinha com suas enormes rodas de madeira que moviam o ralador de mandioca através de um fio de couro cru? A engenhoca separava saber-fazeres, trabalho de homem de trabalho de mulher. Mais do que farinha, fazia o tempo, a cultura, a sociedade. O fabrico do polvilho e da farinha era "trabalho mais de mulher". Em torno das prensas elas colhiam a água branca que escorria da mandioca ralada e preparavam o polvilho. Espalhavam no forno a rala escorrida da mandioca e a moviam com ajuda de um rodo de madeira até que se transformasse em farinha.

O polvilho e a farinha continuam nos supermercados, nas nossas cozinhas e mesas, mas não são feitos da mesma forma. Máquinas automáticas substituíram as rodas, os raladores, os fornos. Operários substituíram comunidades inteiras organizadas em torno daquelas geringonças. Os saberes daqueles homens e mulheres desapareceram para reaparecerem nas máquinas automáticas. Organizações determinadas pelos saber-fazeres, pelas normas e pelos valores da própria comunidade são, há algum tempo, organizações "científicas" definidas por outra maneira de se pensar a vida, o homem e o trabalho.

Muitos ofícios, alguns considerados intocáveis pelo tempo e pelas mudanças que o acompanham, desapareceram. Uns, nem bem surgiram, não existem mais. Quando não desaparecem transformam-se tão profundamente que se tornam irreconhecíveis. E evidenciam o trabalho não mais como uma ação transformadora da natureza, mas como uma ação social. Reconstrói-se a noção de trabalho, mais do que isto, impõem-se profundas rupturas na estrutura social.

Máquinas, ferramentas ou pedaços delas, perdidas em qualquer lugar do País e ameaçadas pela destruição, são as últimas testemunhas de um ofício, de uma sociedade e um modo de se produzir, que não existem mais. São fragmentos do trabalho e do trabalhador, são a chave para compreendermos os processos evolutivos a que estão sujeitos. A partir deles reconstruímos os gestos, os saberes e os saber-fazeres dos ofícios de ontem e compreendemos melhor os de hoje. Reconstruímos os ofícios, a formação, a experiência, as qualificações, a complexidade das tarefas. Reconstruímos, a partir deles, a divisão e a organização do trabalho, as relações sociais e o poder. O lugar de homens, mulheres, crianças, grupos sociais e étnicos, no trabalho e na sociedade.

O que fazer com os fragmentos? O lugar de todos eles é o museu. De lá nos defenderão do sufocamento que o tempo nos impinge. Recolhidos e expostos, a humanidade poderá respirar aliviada. Urge a criação, no Brasil, do Museu Nacional de Artes e Ofícios.





segunda-feira, 19 de maio de 2014

O Museu de Artes e Ofícios e o gesto do trabalhador

Antônio de Pádua Nunes Tomasi

MUSEU DE ARTES E OFÍCIOS - II SEMINÁRIO
SEMINÁRIOS DE CAPACITAÇÃO MUSEOLÓGICA

CONCEITO MUSEOLÓGICO E SALVAGUARDA PATRIMONIAL

DEBATE: A CONSTRUÇÃO E A PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA SOBRE O TRABALHO: FRONTEIRAS DISCIPLINARES

Belo Horizonte - 22-24/08/2002.
                                                                                    
Estamos em vias de inaugurar o Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte, iniciativa que se constitui numa grande aquisição para a cidade e para todos os que se dedicam à cultura, à técnica, à ciência, à arte, à história, à educação e os que se interessam pelo homem e o fazer humano. Ele nos enriquece culturalmente e cria um espaço de pesquisa e de reflexão sobre o trabalho, não apenas o trabalho que os objetos que foram resgatados no tempo testemunham, mas também o trabalho de hoje e de amanhã. Cria a oportunidade de refletirmos sobre a relação homem-sociedade mediada pelo fazer humano, de refletirmos sobre o homem-trabalhador. Uma oportunidade de o homem dialogar consigo mesmo.

Ele nos sugere, não uma obra acabada, definitiva, mas um projeto em permanente construção que se realiza na relação com o visitante de quem é cúmplice. Não uma amostra do passado, que chega até ao visitante como que uma coleção de objetos, passageiros de uma máquina do tempo, mas, diferentemente disto, um olhar sobre o passado. É, pois, o nosso olhar que lhe dá sentido, assim como deu sentido ao universo o olhar de Galileu Galilei, para lembrarmos um homem de ciência e arte. Ele olha com o olhar do seu tempo, da sua sociedade e da sua cultura, mas olha com o olhar de homem, de indivíduo pleno de experiências, inventividades, conhecimentos, valores e emoções.
                        
Assim, o Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte torna-se um lugar privilegiado de encontro do homem e da própria cidade com a sua história, com o seu tempo, passado, presente, mas também futuro, na medida em que o confronta com as transformações tecnológicas e sociais e com as incertezas trazidas por elas. Um lugar onde técnica, conhecimento, método, habilidade humana, sentimento, desejo e necessidade se materializam na forma de ferramentas, utensílios, equipamentos e objetos de uso os mais diversos.
                        
Diante de cada uma das peças ali expostas, uma fronteira difusa mal separa a arte do trabalho, a vida de trabalho da vida de não-trabalho. Mesmo que consideremos que a necessidade natural ou a obrigação social separem o trabalho da arte, esta entendida como o agir da livre criação humana (K. Kosik, 1976)[1], as peças expostas no museu continuarão a testemunhar a imprecisão da separação. Mesmo trabalhando, mesmo condicionado por suas necessidades, o homem produz arte. Como classificar de outra forma as peças expostas?
                        
Uma fronteira difusa mal separa o homem do produto do seu trabalho; o sofrimento do prazer. Mais uma vez a imprecisão tem lugar. Os homens, as mulheres, as crianças, os índios, os escravos e os imigrantes que se reuniram em torno de ferramentas, utensílios e máquinas de todo tipo, foram constrangidos por diferentes necessidades e condições, que nem sempre lhes permitiram se reconhecer no produto de seu trabalho. 
                        
Se ali se encontram ferramentas e outros objetos de trabalho, talvez o que melhor traduz este lugar seja a relação homem-natureza. Esta relação se define pela transformação intencional da natureza pelo homem para a produção da sua existência. Mas ao transformá-la, ele também se transforma. Surgem, então, os homens de ofício que agem e pensam como tais porque assim foram construídos pela natureza que eles transformaram.
                        
A transformação da natureza se dá, todavia, dentro de condições históricas as mais diversas. Ao longo do tempo, constrangimentos, sobretudo sociais e econômicos que designavam atividades diferentes aos homens, identificaram camponeses, escravos, artesãos, operários, mas também, nobres, comerciantes, homens de negócio, e toda sorte de "trabalhadores" e de "não-trabalhadores".
                        
A atividade que caracteriza a relação homem-natureza é uma mescla de trabalho e arte, de sofrimento e prazer, de consciência e alienação. O gesto que intervém e transforma o mundo está, entretanto, longe de se limitar à sua dimensão natural. Seu viés social se faz presente e é imprescindível para entendermos a primeira e mais profunda divisão encontrada entre os seres humanos, a que os separa segundo o sexo, a  raça, a idade, e mais tarde, a que os separa segundo a posse, ou não, dos meios de produção.
                        
Assim, importa-nos, não apenas a dimensão natural do gesto que trabalha o objeto e lhe dá vida, do gesto preciso que fabrica coisas e assegura o seu funcionamento, do gesto que pode ser mensurado, controlado e submetido a uma economia de tempos e de movimentos, elementos centrais da organização "científica" do trabalho (Taylor, 1987)[2], mas também a dimensão humana e social do gesto que, ao produzir a existência humana, produz, também, sociedade e cultura, traduz hábitos, costumes, sentimentos, pensamentos, modos de viver e de ser. Em outras palavras, os gestos que dão vida aos objetos são reveladores das sociedades e dos indivíduos.
                        
Uma fronteira difusa, então, mal separa as muitas disciplinas envolvidas com o homem e o seu fazer. A sociologia, a antropologia, a psicologia, a economia, a ergonomia, a pedagogia, a ciência da cognição, a arquitetura, a museologia, a história, a educação, entre outras disciplinas, estão convidadas à reflexão. Elas estão igualmente convidadas a tomar o gesto humano como objeto de estudo, como objeto analisador das relações sociais e humanas e como ação sensível que transforma a natureza.
                        
O museu é, portanto, ponto de encontro de diferentes campos do conhecimento e profissionais, e de diferentes pontos de vista. É ponto de encontro de arte, técnica, ciência, política e ideologia expressos na ação humana, no gesto de cada trabalhador.
                        
A sociologia do trabalho, diante dos objetos ali expostos, tem como tarefa compreender como se constrói socialmente o gesto do trabalhador que dá vida aos objetos. Seu interesse por estes últimos vai além das suas dimensões e formatos apropriados à fabricação de coisas, ele vai ao encontro do gesto hábil. Hábil no sentido da destreza, da habilidade manual, mas hábil, também, no sentido da idoneidade como nos permite pensar a raiz latina habere, donde habilis. Estas raízes expressam dois sentidos: o primeiro é a capacidade, a destreza, a habilidade, e o segundo a idoneidade, a virtuosidade. Como nos assegura o sociólogo francês Pierre Naville (1956), um dos fundadores da sociologia do trabalho, "o homem hábil é também idôneo, virtuoso"[3].
                        
A sociologia vai, então, em busca deste homem-trabalhador que, ao agir expressa um saber-fazer, mas igualmente um saber-ser. Nesta busca ela se confronta com duas perspectivas de investigação: uma que vai em direção à sociedade e outra ao indivíduo. Elas são, entretanto, indissociáveis e nenhuma delas, isoladamente, nos levará a uma ou ao outro. Isto porque, para lembrar um dos mais importante sociólogos do nosso tempo, "a sociologia é o diálogo entre os que acreditam na sociedade e os que acreditam na ação social". (Alain Touraine, 1995)[4].
* * *

O que dizem os gestos dos trabalhadores sobre as suas sociedades? Eles falam, inicialmente, do homem primitivo reunido em famílias ou em pequenos grupos, em busca da caça ou do fruto para amainar a sua fome e a dos seus. Entretanto, se dermos um salto no tempo e tomarmos como referência a sociedade em que vivemos, eles falam do surgimento das populações. A população, como nos ensina Michel Foucault[5], encontra-se na origem da nossa sociedade, no momento em que o Estado descobre a necessidade de administrar, não mais "sujeitos" ou "povos", mas um novo objeto, uma "população", constituída de fenômenos específicos e variáveis próprias, expressas em taxas de natalidade, em tempo médio de vida, em causas mais freqüentes de morte etc. Diferentemente do que ocorre com o indivíduo ou com os povos, a população exige do Estado uma outra administração segundo sua composição (gênero, idade, ofício etc.), exige um uso determinado do poder e das formas de controle social e expressa necessidades específicas.
                        
Empurradas pelos processos migratórios as populações se dividem, num primeiro momento, entre o campo e a cidade e se diferenciam segundo estes lugares. Tais processos portam no seu interior necessidades, afazeres, especializações e ofícios distintos. Portam, ainda, formas de organização, modos de ser e de viver.
                        
Cada objeto exposto no Museu de Artes e Oficios de Belo Horizonte fala das populações e das habilidades gestuais e disponibilidades ao trabalho daqueles que as compõem: garimpeiros, marceneiros, coureiros, ferreiros, cesteiros, agricultores etc. Fabricantes de coisas, afinal. As necessidades humanas expressas pelos objetos, assim como as tramas do poder pertinentes aos processos de dominação no interior das relações sociais, configuram as populações.
                        
A divisão técnica do trabalho, um aprofundamento da especialização das atividades humanas, e os mecanismos sócio-econômicos e de poder, que permitem a apropriação desigual da produção, se encarregarão de determinar aos homens lugares sociais diferentes.
                        
Diferenciam-se os gestos segundo os afazeres humanos, segundo o lugar na divisão do trabalho e, portanto, na sociedade. Gestos distintos identificam trabalhadores de diferentes ofícios e lugares sociais, onde se encontram homens, mulheres ou crianças, homens livres ou escravos. Identificam as relações sociais, políticas e de poder que os homens estabelecem entre si e a sociedade, e os modos de organização nos quais estão inseridos.
                       
Assim, por trás de cada objeto esconde-se o gesto que identifica o trabalhador. Gestos e ofícios distintos não são, entretanto, obstáculos para que ele se identifique com o outro na sua condição de trabalhador. É a consciência desta condição, da inserção num determinado modo de produção, que o torna um igual, um trabalhador coletivo, solidário, diríamos, encontrado tanto nas corporações de ofício que reuniam os artesãos da Idade Média, quanto nas senzalas, nas oficinas, nas minas, nas tribos indígenas, nas portas de fábricas ou nos sindicatos de operários e de outros trabalhadores assalariados que povoaram os últimos séculos até os dias de hoje. Ele construiu sua identidade nos afazeres domésticos, nos engenhos de cana-de-açúcar, nas minas de ouro, nas oficinas, nas fábricas e nos movimentos sociais. Ele agora é coletivo, é classe, é organização em busca de justiça e transformação social. Ele pensa coletivamente, ele sente coletivamente, ele constrói coletivamente suas estratégias e sua história.
                        
É a consciência das suas condições de vida e de seu lugar social que, ao aproximá-lo dos seus iguais, do coletivo, torna possível a transformação e a justiça social. Entendido, aqui, por coletivo um sentido específico do termo, ou seja, condicionado e definido pela organização em questão.
                        
Grande parte da sociologia tem como referência esse trabalhador. Ela refuta os modelos de análise das relações de trabalho fundadas no conformismo, na evolução natural das coisas, na organicidade das relações, na harmonia como destino, e nega o natural como matriz das relações sociais.
                   
O Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte por meio das peças, ferramentas, máquinas e utensílios pertencentes ao seu acervo, nos permite olhar para este trabalhador em diferentes momentos históricos. Ele nos possibilita a revelação do seu modo de ser, de viver e de produzir na sociedade escravocrata ou livre. Ele nos permite antevê-lo na medida em que registra os seus últimos gestos que precedem a separação capital/trabalho. Os últimos gestos inteiros, plenos de autonomia, ação livre e criativa, antes de parcelar-se, de tornar-se um complemento repetitivo da máquina.
                        
Ele nos permite antever ao longo do tempo vivido e da história, a organização do trabalho transformar-se e voltar-se contra o trabalhador. E, ainda, o saber e o saber-fazer desintegrarem-se e a escapar-lhe o controle sobre o processo de trabalho. Ele nos permite antever o trabalho esmigalhar-se levando consigo muitos ofícios.
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O que dizem os gestos dos trabalhadores sobre eles mesmos? Eles falam do homem pleno de motivações, pensamentos e desejos, movido por crenças e valores, por princípios morais e religiosos. Eles falam de diferentes habilidades, diferentes capacidades intelectuais e cognitivas e, portanto, de diferentes modos de ser e de viver, de intervir na natureza e com ela se relacionar. Eles falam, sobretudo, da sua capacidade de criar.
                        
Quem é o homem que faz cestos, prepara a farinha ou controla máquinas e processos sofisticados na indústria automatizada? O que pensa e sente? Como intervém? Com que recursos emocionais, intelectuais e cognitivos conta? Quais são os seus saberes? Como aprendeu a fazer e a ser?
                        
Sua ação expressa a capacidade de aprender a aprender, de articular e mobilizar saberes, de decidir. Ele dá forma aos objetos, sequência às operações, ritmo ao trabalho e às máquinas, ele lida com as incertezas, antecipa-se às panes, produz um projeto de trabalho, um sistema de produção.
                        
Assim, um mesmo ofício, um mesmo posto de trabalho, as mesmas ferramentas não são suficientes para encobrir as diferenças entre os trabalhadores, sejam eles os artesãos da idade média, sejam eles os operários da indústria automatizada dos dias atuais.
                        
Essas diferenças reclamam uma identidade construída além do espaço de trabalho, nas igrejas, nas ruas, nos bares, na família, nas confraternizações, no lazer...
                        
Ele não é um trabalhador, apenas. Ele não é uma "comodite". No seu embate cotidiano, na luta pela sobrevivência, ele descobre que a oposição não é um campo econômico e, portanto, há sempre algo que não pode ser negociado, que não pode ser vendido, que não pode ser conseguido.
                        
A justiça que ele reclama não é, desta forma, um equilíbrio entre quantidades economicamente dimensionadas, ela vai além e tangencia a sua subjetividade.
                        
Os gestos dos trabalhadores falam, então, de indivíduos que reclamam a identidade de homem, de sujeitos cuja ação socialmente motivada transforma o mundo.
                        
Voltemos a Galileu Galilei. O mundo é transformado graças, também, a pessoas como ele que, na solidão da noite, volta o olhar para o céu. Um olhar diferente de todos de até então, um olhar que inventa as ciências modernas[6] e revoluciona social e politicamente o mundo.
                        
O museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte está pleno de homens e mulheres assim. Ainda que deles tenham restado apenas alguns apetrechos de trabalho, podemos vê-los em cada pequeno detalhe das peças. Podemos vê-los na dobra do avental de couro que copia o corpo do coureiro, na marca de mãos no rodo que espalha a farinha no forno, no trançado das cestarias. Ainda que a história tenha sido apenas discreta para com eles, eles estão lá, eles criaram, inventaram, transformaram o mundo. Eles são trabalhadores, são também os visitantes do museu, passageiros apressados rumo ao trabalho, desempregados, desocupados, estudantes, curiosos, apaixonados, viajantes do trem-de-ferro, moradores do campo e da cidade. É preciso apenas olhos para vê-los.




[1] KOSIK, K. Dialética do concreto. S.Paulo: Ed. Paz e Terra, 1976, p.187
[2] TAYLOR, F. W. Princípios de Administração Científica. S. Paulo: Ed. Atlas, 1987, 130p.
[3] NAVILLE, P. Essai sur la qualification du travail. Paris: Librarie Marcel Rivière et cie, 1956, 148p. (Coll. Recherches de Sociologie du travail).
[4] TOURAINE, A. "Préface". COSTER, M., PICHAULT, F. Traité de sociologie du travail. Bruxelles, De BOECK Université, 1994, 551p.  
[5] FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité. tome 1: "La volonté de savoir". Paris: Gallimart, 1994, p.36.
[6] STENGERS, I. A invenção das ciências modernas. S.Paulo: Editora 34, 2002.



Parece mar

Antônio de Pádua Nunes Tomasi

Revista Extensão & Comunidade - CEFET-MG, Belo Horizonte, vol. 1, n.1, p. 28-33, nov. 2014.

É quase mar. As águas começam nos nossos pés e parecem tocar o infinito. Fechamos os olhos e o barulho das ondas nos dá a certeza de que estamos no mar. Mas qual, o quê? O mar está longe, muito longe. Toda a água que vemos, um mundão de água doce, vai pra lá, pra longe, pra bem longe. Águas da bacia amazônica, que escoam densamente e enchem o mar. É assim dia e noite.

É desse mar que sai a comida dos ribeirinhos e ilhéus que habitam a região de Barcarena, no Pará, desembocadura da bacia amazônica. É Pacu, Filhote, Apapá, Aruanã, Barbado, Bicuda, Cachorra, Curimatã, Curimbatá, Gurijuba, Jatuarana, Piramutaba, Piranha, Pirarara, Pirarucu, Jaú e tantos outros peixes. É preciso não esquecer o peixe boi, o boto e nem o camarão e outros bichos e mariscos em abundância.

É desse mar que saem as lendas, que organizam e dão sentido à vida de mulheres, homens e crianças. O Boto, belo cavalheiro finamente vestido de branco, encanta as moças nas noites da Amazônia. A Cobra Grande afunda barcos e devora barqueiros. A jovem índia Naiá, transformada por Jaci, a lua, na Vitória-Régia, enfeita a Amazônia. Histórias de outro mundo. Crença e fé religiosa se misturam. Valei-nos Virgem de Nazaré, gritam os navegantes diante dos perigos das águas do Pará. Outubro é tempo de pagar promessas e de renovar esperanças. Milhões de viventes se juntam em preces e no esforço de puxar a corda que conduz o Círio de Nazaré pelas ruas de Belém.
Fervorosos viventes, herdeiros da força, da coragem e da resistência dos cabanos, gente pobre, quase miserável, cuja revolta, conhecida como “A Cabanagem" (1835-1840), fez história na província de Grão-Pará e no Brasil.
Encosta o mar de água doce na várzea, que guarda casinhas coloridas, mal escondidas por açaizeiros. Diante delas dezenas de armadilhas de camarão e linhas de pesca prometem o almoço. Crianças saltam de pequenos barcos, quase pirogas, e mergulham nas águas a despeito de perigos. Elas vivem na água. Aprendem a nadar antes mesmo de aprender a andar.

É a várzea e a terra firme que complementam o que o “mar” lhes oferece.  A terra é farta em frutas. Além do açaí tem araçá-boi, buriti, pupunha, cupuaçu, graviola, tucumã, bacuri, muruci, taperebá, castanha, pequiá... Na terra firme eles colhem a mandioca que dá origem a dezenas de tipos de farinha. O açaí com farinha de tapioca, peixe ou camarão é comida de todos os dias do povo do lugar. Mais longe das ilhas, no continente, é comida de quase sempre, também, a maniçoba, o pato no tucupi e o tacacá.

A terra é farta em plantas, óleos e ervas de toda natureza. Do meio da mata saem remédios para todos os males do corpo e da alma, gostos que enfeitam paladares, perfumes que seduzem o mundo: copaíba, andiroba, guaraná, cipó miraruíra, cipó unha de gato, urucu, marapuama, pataqueira, catinga de mulata, estoraque, pau-rosa, puxuri, copaíba, preciosa, macacaporanga, cumaru, priprioca, muru-muru e tantas outras. A folha de jambu, que dá uma dormência na boca quando a mastigamos, é erva obrigatória na cozinha paraense, é remédio do povo, que também a aprecia sabiamente na cachaça.

Araras, papagaios e outros pássaros coloridos cortam o céu sobre a floresta que esconde dos olhos do homem as preguiças, quatis, capivaras, jacarés, sucuris, onças, macacos, tartarugas, ariranhas e tantos outros animais. E que esconde, também, o uirapuru com o seu canto de rara audição.

E da terra, das suas entranhas, afloram adormecidas riquezas minerais: hematita, cassiterita, bauxita, pirolusita, ouro, nióbio, titânio, urânio, sal, calcário, barita, areia, caulim, níquel, chumbo, cobre, zinco e muito mais. Empresas de todo mundo lá se instalam. Operários e barulhentas máquinas gigantes entram floresta adentro no trabalho de prospecção, extração e transformação das riquezas.

Aqui, no sul maravilha, onde uma neblina suspeita rodeia arranha-céus e entra pulmão adentro de seus habitantes, quase nada se ouve além do barulho dos reluzentes automóveis, que enchem ruas e avenidas das cidades. Quase nada se ouve além do barulho de gente correndo, sabe Deus pra onde. Daqui não se ouve o barulho de lá, das máquinas que bufam na Amazônia.  Nem se vê o verde que para sempre ganha a cor amarronzada do chão e desaparece. Daqui, diante da TV, mal se tem ideia do que vem a ser a Amazônia, uma parte do Brasil, da qual sempre ouvimos falar, mas não conhecemos. Mas para conhecer mesmo, de verdade, o que é a Amazônia, é preciso ir lá e tocar o paraíso, o inferno verde, como a denominou o engenheiro Alberto Rangel em sua obra literária de 1908, ou o que ainda resta dela.

Cerca de 50 alunos dos três níveis de ensino do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais – CEFET-MG conhecem o paraíso ou o inferno verde. Uma vez por ano e desde 2010 um punhado deles participa da OPERAÇÃO AMAZÔNIA, uma das atividades acadêmicas do Grupo de Pesquisa Programa de Estudos em Engenharia, Sociedade e Tecnologia – PROGEST que acontece em meio à floresta amazônica. Eles embarcam nas rabetas, pequenas embarcações a motor que cortam os muitos rios, igarapés, igapós e furos das ilhas da bacia amazônica na região de Barcarena e se deslumbram com a força e a beleza da natureza. Depois de horas subindo as águas, navegando uma parte do Brasil, ouvindo os ensurdecedores popopôs dos motores das rabetas, suando em bicas dentro de coloridos coletes salva-vidas, eles desembarcam nas ilhas. Aportam nas escolas, nas associações comunitárias, nas pequenas casas de gente quase índia, quase branca, uma mágica mistura que dá brilho à vida das comunidades locais e às suas crianças, seres sorridentes e aquáticos.

No almoço não falta açaí e nem camarão, colhidos, batidos e pescados na hora; nem a farinha de tapioca, branca e leve, com um surpreendente e maravilhoso gosto de nada. Agradecidos e em troca, os alunos do CEFET-MG oferecem saberes do mundo científico e tecnológico e a força da sua juventude.

Em salas de aula improvisadas eles dividem com jovens e adultos das comunidades de ribeirinhos e de ilhéus o que aprenderam na escola e fora dela: um outro modo de pensar, uma racionalidade que dá sentido e torna compreensível cálculos, medidas, projetos e fabricação de coisas. Pelas mãos de todos, edificações são renovadas ou melhoradas. Novos conhecimentos e mesmo ofícios se esboçam nos saberes e gestos aprendidos e treinados pelos meninos e meninas do PROGEST e pela gente do lugar.

Mas os meninos e meninas do PROGEST aprendem, também, com as comunidades, um outro modo de viver, de pensar e de construir a realidade. Aprendem a preparar a poqueca, uma mistura de babaçu com coco ralado embrulhada em folha de guarumã. O pequeno embrulho dentro do matapi, uma armadilha fixa, uma espécie de gaiola cilíndrica confeccionada com miriti, fibra vegetal abundante na região, é uma excelente isca para pegar camarão. Eles aprendem a coletar, a medir e a transportar em rasas, e a bater o açaí. Eles aprendem a ralar a mandioca, a encher o tipiti de massa, a escorrer a água e fazer a farinha. Eles aprendem tantas coisas!

Juntos, eles compartilham saberes e constroem novos conhecimentos. Aos poucos eles aprendem que os problemas da Amazônia, de seu povo e de toda a sociedade brasileira são ainda maiores e plenos de contradição. E são tão maiores, quanto menor é a atenção que damos a eles. 

Comunidades inteiras morrem de sede, rodeadas de água por todos os lados. Sem energia elétrica para iluminar as casas e as salas de aula, para movimentar as máquinas que batem o açaí, para fazer gelo e manter conservado o açaí batido, a pesca ou o alimento do dia, comunidades inteiras vivem na escuridão da noite, intoxicadas pelo querosene das lamparinas, no desconforto e no esquecimento dos tempos dos cabanos.

Estudar as condições locais, projetar e executar uma estação de tratamento de águas e um gerador alternativo de energia elétrica é o desafio e o compromisso de estudantes do PROGEST.

Mas como tratar a água que corre lentamente nos igarapés e rios? A água parece ser imprópria ao consumo, contaminada por dejetos de toda sorte, trazidos pela modernidade do sul maravilha e do resto do mundo. Estações de tratamento de água não são uma novidade científica ou tecnológica, mas como dimensioná-la de forma a atender as demandas e as condições locais?  

Como produzir energia em condições tão desfavoráveis? Nada de quedas d’água, nada de vento e um céu quase sempre encoberto por nuvens, que despencam do alto todos os dias dividindo a vida dos paraenses no antes e no depois das chuvas. Que desafio!

Se os painéis fotovoltaicos não são suficientes para produzir a energia que precisamos, pensam os meninos e meninas do CEFET-MG, podemos queimar os caroços de açaí, aquecer uma caldeira, fazer funcionar uma turbina e, pronto. Aí está a energia que precisamos. Mas como organizar ideias, fazer escolhas, elaborar projetos e construir protótipos? Como materializar uma ideia? Mãos à obra. É trabalho duro de corações e mentes de jovens estudantes, quase crianças, em meio a um calor úmido e estafante. Eles tomam nota de tudo, entrevistam o povo do lugar e fazem registros para estudos e publicações futuras.

Fim do dia. Ainda com o barulho dos motores das rabetas em suas cabeças, com os corpos exaustos e cobertos de suor, meninos e meninas do PROGEST mergulham nas águas claras da piscina do hotel, que os abriga em plena selva. Um descanso merecido. São mais seguras as águas da piscina do que as do “mar”, que ficam logo em frente ao hotel. _ Ninguém entra no “mar”, são as ordens. Suas águas guardam perigos. Mas qual, o quê? As ondas, a areia, a brisa, as mesas do restaurante do hotel com sombrinhas coloridas... Tudo lembra o mar, o mar de verdade. A desobediência é inevitável. Todo mundo na água, na água do “mar”. Não demorou e de longe se ouviu gritos. Em seguida, um corre-corre. Os desobedientes saem da água num galope e atrás deles há um rastro de sangue. O ferrão de uma arraia havia furado o calcanhar de um dos meninos. Uma dor dos diabos. Correria para o hospital. E lá tem médico, tem pequena cirurgia, tem curativo e injeção. Noites sem dormir e pernas para o alto. Vai voltar pra casa mancando. Dito e feito.

De volta a BH, no aeroporto de Confins, com a perna encolhida e amparado por dois dos companheiros de desobediência, o menino ainda esboça alguma dor. Desconjuntado, mal conseguia ficar de pé. Um dos meninos, o mais menino deles, o último a desembarcar, parou e bem de perto olhou para o coitado e maliciosamente asseverou: _ Ô véio, de boa, isso não foi arraia, não! A gargalhada foi geral. Estava chegando ao fim mais uma OPERAÇÃO AMAZÔNIA.