Antônio de Pádua Nunes Tomasi
Jornal O Tempo. Caderno Opinião, p.8 (23/7/2000)
"Camada sobre camada, as eras passadas conservam-se
na cidade até que a própria vida esteja finalmente ameaçada de sufocamento;
neste ponto, num gesto claro de defesa, o homem inventa o museu." Lewis
Munford, (Introdução) "The culture of cities", 1938.
De
repente nos damos conta de que vivemos em um mundo completamente diferente do
vivido até há pouco tempo. Novas palavras, novos objetos, novas máquinas, novas
relações se impõem e mudam de forma radical e definitiva nossas vidas. Vidas,
por vezes, sentidas e pensadas a partir não dos nossos ganhos, mas das nossas
perdas. O mundo do trabalho é cheio delas. Perdemos conhecimentos e
experiências, saberes e saber-fazeres, ofícios e qualificações, gestos, tudo
encoberto para sempre pelo tempo. Memórias que se apagaram. Na Sociologia do
Trabalho, entre outras coisas, tratamos das perdas. O preparo do queijo, da
rapadura, o trabalho do ferreiro. Onde estão os curtumes, as ourivesarias, os
alambiques de cachaça? Onde estão as casas de farinha com suas enormes rodas de
madeira que moviam o ralador de mandioca através de um fio de couro cru? A
engenhoca separava saber-fazeres, trabalho de homem de trabalho de mulher. Mais
do que farinha, fazia o tempo, a cultura, a sociedade. O fabrico do polvilho e
da farinha era "trabalho mais de mulher". Em torno das prensas elas
colhiam a água branca que escorria da mandioca ralada e preparavam o polvilho.
Espalhavam no forno a rala escorrida da mandioca e a moviam com ajuda de um
rodo de madeira até que se transformasse em farinha.
O polvilho e a farinha continuam nos supermercados, nas nossas cozinhas e mesas, mas não são feitos da mesma forma. Máquinas automáticas substituíram as rodas, os raladores, os fornos. Operários substituíram comunidades inteiras organizadas em torno daquelas geringonças. Os saberes daqueles homens e mulheres desapareceram para reaparecerem nas máquinas automáticas. Organizações determinadas pelos saber-fazeres, pelas normas e pelos valores da própria comunidade são, há algum tempo, organizações "científicas" definidas por outra maneira de se pensar a vida, o homem e o trabalho.
Muitos ofícios, alguns considerados intocáveis pelo tempo e pelas mudanças que o acompanham, desapareceram. Uns, nem bem surgiram, não existem mais. Quando não desaparecem transformam-se tão profundamente que se tornam irreconhecíveis. E evidenciam o trabalho não mais como uma ação transformadora da natureza, mas como uma ação social. Reconstrói-se a noção de trabalho, mais do que isto, impõem-se profundas rupturas na estrutura social.
Máquinas, ferramentas ou pedaços delas, perdidas em qualquer lugar do País e ameaçadas pela destruição, são as últimas testemunhas de um ofício, de uma sociedade e um modo de se produzir, que não existem mais. São fragmentos do trabalho e do trabalhador, são a chave para compreendermos os processos evolutivos a que estão sujeitos. A partir deles reconstruímos os gestos, os saberes e os saber-fazeres dos ofícios de ontem e compreendemos melhor os de hoje. Reconstruímos os ofícios, a formação, a experiência, as qualificações, a complexidade das tarefas. Reconstruímos, a partir deles, a divisão e a organização do trabalho, as relações sociais e o poder. O lugar de homens, mulheres, crianças, grupos sociais e étnicos, no trabalho e na sociedade.
O que fazer com os fragmentos? O lugar de todos eles é o museu. De lá nos defenderão do sufocamento que o tempo nos impinge. Recolhidos e expostos, a humanidade poderá respirar aliviada. Urge a criação, no Brasil, do Museu Nacional de Artes e Ofícios.
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