segunda-feira, 19 de maio de 2014

O Museu de Artes e Ofícios e o gesto do trabalhador

Antônio de Pádua Nunes Tomasi

MUSEU DE ARTES E OFÍCIOS - II SEMINÁRIO
SEMINÁRIOS DE CAPACITAÇÃO MUSEOLÓGICA

CONCEITO MUSEOLÓGICO E SALVAGUARDA PATRIMONIAL

DEBATE: A CONSTRUÇÃO E A PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA SOBRE O TRABALHO: FRONTEIRAS DISCIPLINARES

Belo Horizonte - 22-24/08/2002.
                                                                                    
Estamos em vias de inaugurar o Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte, iniciativa que se constitui numa grande aquisição para a cidade e para todos os que se dedicam à cultura, à técnica, à ciência, à arte, à história, à educação e os que se interessam pelo homem e o fazer humano. Ele nos enriquece culturalmente e cria um espaço de pesquisa e de reflexão sobre o trabalho, não apenas o trabalho que os objetos que foram resgatados no tempo testemunham, mas também o trabalho de hoje e de amanhã. Cria a oportunidade de refletirmos sobre a relação homem-sociedade mediada pelo fazer humano, de refletirmos sobre o homem-trabalhador. Uma oportunidade de o homem dialogar consigo mesmo.

Ele nos sugere, não uma obra acabada, definitiva, mas um projeto em permanente construção que se realiza na relação com o visitante de quem é cúmplice. Não uma amostra do passado, que chega até ao visitante como que uma coleção de objetos, passageiros de uma máquina do tempo, mas, diferentemente disto, um olhar sobre o passado. É, pois, o nosso olhar que lhe dá sentido, assim como deu sentido ao universo o olhar de Galileu Galilei, para lembrarmos um homem de ciência e arte. Ele olha com o olhar do seu tempo, da sua sociedade e da sua cultura, mas olha com o olhar de homem, de indivíduo pleno de experiências, inventividades, conhecimentos, valores e emoções.
                        
Assim, o Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte torna-se um lugar privilegiado de encontro do homem e da própria cidade com a sua história, com o seu tempo, passado, presente, mas também futuro, na medida em que o confronta com as transformações tecnológicas e sociais e com as incertezas trazidas por elas. Um lugar onde técnica, conhecimento, método, habilidade humana, sentimento, desejo e necessidade se materializam na forma de ferramentas, utensílios, equipamentos e objetos de uso os mais diversos.
                        
Diante de cada uma das peças ali expostas, uma fronteira difusa mal separa a arte do trabalho, a vida de trabalho da vida de não-trabalho. Mesmo que consideremos que a necessidade natural ou a obrigação social separem o trabalho da arte, esta entendida como o agir da livre criação humana (K. Kosik, 1976)[1], as peças expostas no museu continuarão a testemunhar a imprecisão da separação. Mesmo trabalhando, mesmo condicionado por suas necessidades, o homem produz arte. Como classificar de outra forma as peças expostas?
                        
Uma fronteira difusa mal separa o homem do produto do seu trabalho; o sofrimento do prazer. Mais uma vez a imprecisão tem lugar. Os homens, as mulheres, as crianças, os índios, os escravos e os imigrantes que se reuniram em torno de ferramentas, utensílios e máquinas de todo tipo, foram constrangidos por diferentes necessidades e condições, que nem sempre lhes permitiram se reconhecer no produto de seu trabalho. 
                        
Se ali se encontram ferramentas e outros objetos de trabalho, talvez o que melhor traduz este lugar seja a relação homem-natureza. Esta relação se define pela transformação intencional da natureza pelo homem para a produção da sua existência. Mas ao transformá-la, ele também se transforma. Surgem, então, os homens de ofício que agem e pensam como tais porque assim foram construídos pela natureza que eles transformaram.
                        
A transformação da natureza se dá, todavia, dentro de condições históricas as mais diversas. Ao longo do tempo, constrangimentos, sobretudo sociais e econômicos que designavam atividades diferentes aos homens, identificaram camponeses, escravos, artesãos, operários, mas também, nobres, comerciantes, homens de negócio, e toda sorte de "trabalhadores" e de "não-trabalhadores".
                        
A atividade que caracteriza a relação homem-natureza é uma mescla de trabalho e arte, de sofrimento e prazer, de consciência e alienação. O gesto que intervém e transforma o mundo está, entretanto, longe de se limitar à sua dimensão natural. Seu viés social se faz presente e é imprescindível para entendermos a primeira e mais profunda divisão encontrada entre os seres humanos, a que os separa segundo o sexo, a  raça, a idade, e mais tarde, a que os separa segundo a posse, ou não, dos meios de produção.
                        
Assim, importa-nos, não apenas a dimensão natural do gesto que trabalha o objeto e lhe dá vida, do gesto preciso que fabrica coisas e assegura o seu funcionamento, do gesto que pode ser mensurado, controlado e submetido a uma economia de tempos e de movimentos, elementos centrais da organização "científica" do trabalho (Taylor, 1987)[2], mas também a dimensão humana e social do gesto que, ao produzir a existência humana, produz, também, sociedade e cultura, traduz hábitos, costumes, sentimentos, pensamentos, modos de viver e de ser. Em outras palavras, os gestos que dão vida aos objetos são reveladores das sociedades e dos indivíduos.
                        
Uma fronteira difusa, então, mal separa as muitas disciplinas envolvidas com o homem e o seu fazer. A sociologia, a antropologia, a psicologia, a economia, a ergonomia, a pedagogia, a ciência da cognição, a arquitetura, a museologia, a história, a educação, entre outras disciplinas, estão convidadas à reflexão. Elas estão igualmente convidadas a tomar o gesto humano como objeto de estudo, como objeto analisador das relações sociais e humanas e como ação sensível que transforma a natureza.
                        
O museu é, portanto, ponto de encontro de diferentes campos do conhecimento e profissionais, e de diferentes pontos de vista. É ponto de encontro de arte, técnica, ciência, política e ideologia expressos na ação humana, no gesto de cada trabalhador.
                        
A sociologia do trabalho, diante dos objetos ali expostos, tem como tarefa compreender como se constrói socialmente o gesto do trabalhador que dá vida aos objetos. Seu interesse por estes últimos vai além das suas dimensões e formatos apropriados à fabricação de coisas, ele vai ao encontro do gesto hábil. Hábil no sentido da destreza, da habilidade manual, mas hábil, também, no sentido da idoneidade como nos permite pensar a raiz latina habere, donde habilis. Estas raízes expressam dois sentidos: o primeiro é a capacidade, a destreza, a habilidade, e o segundo a idoneidade, a virtuosidade. Como nos assegura o sociólogo francês Pierre Naville (1956), um dos fundadores da sociologia do trabalho, "o homem hábil é também idôneo, virtuoso"[3].
                        
A sociologia vai, então, em busca deste homem-trabalhador que, ao agir expressa um saber-fazer, mas igualmente um saber-ser. Nesta busca ela se confronta com duas perspectivas de investigação: uma que vai em direção à sociedade e outra ao indivíduo. Elas são, entretanto, indissociáveis e nenhuma delas, isoladamente, nos levará a uma ou ao outro. Isto porque, para lembrar um dos mais importante sociólogos do nosso tempo, "a sociologia é o diálogo entre os que acreditam na sociedade e os que acreditam na ação social". (Alain Touraine, 1995)[4].
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O que dizem os gestos dos trabalhadores sobre as suas sociedades? Eles falam, inicialmente, do homem primitivo reunido em famílias ou em pequenos grupos, em busca da caça ou do fruto para amainar a sua fome e a dos seus. Entretanto, se dermos um salto no tempo e tomarmos como referência a sociedade em que vivemos, eles falam do surgimento das populações. A população, como nos ensina Michel Foucault[5], encontra-se na origem da nossa sociedade, no momento em que o Estado descobre a necessidade de administrar, não mais "sujeitos" ou "povos", mas um novo objeto, uma "população", constituída de fenômenos específicos e variáveis próprias, expressas em taxas de natalidade, em tempo médio de vida, em causas mais freqüentes de morte etc. Diferentemente do que ocorre com o indivíduo ou com os povos, a população exige do Estado uma outra administração segundo sua composição (gênero, idade, ofício etc.), exige um uso determinado do poder e das formas de controle social e expressa necessidades específicas.
                        
Empurradas pelos processos migratórios as populações se dividem, num primeiro momento, entre o campo e a cidade e se diferenciam segundo estes lugares. Tais processos portam no seu interior necessidades, afazeres, especializações e ofícios distintos. Portam, ainda, formas de organização, modos de ser e de viver.
                        
Cada objeto exposto no Museu de Artes e Oficios de Belo Horizonte fala das populações e das habilidades gestuais e disponibilidades ao trabalho daqueles que as compõem: garimpeiros, marceneiros, coureiros, ferreiros, cesteiros, agricultores etc. Fabricantes de coisas, afinal. As necessidades humanas expressas pelos objetos, assim como as tramas do poder pertinentes aos processos de dominação no interior das relações sociais, configuram as populações.
                        
A divisão técnica do trabalho, um aprofundamento da especialização das atividades humanas, e os mecanismos sócio-econômicos e de poder, que permitem a apropriação desigual da produção, se encarregarão de determinar aos homens lugares sociais diferentes.
                        
Diferenciam-se os gestos segundo os afazeres humanos, segundo o lugar na divisão do trabalho e, portanto, na sociedade. Gestos distintos identificam trabalhadores de diferentes ofícios e lugares sociais, onde se encontram homens, mulheres ou crianças, homens livres ou escravos. Identificam as relações sociais, políticas e de poder que os homens estabelecem entre si e a sociedade, e os modos de organização nos quais estão inseridos.
                       
Assim, por trás de cada objeto esconde-se o gesto que identifica o trabalhador. Gestos e ofícios distintos não são, entretanto, obstáculos para que ele se identifique com o outro na sua condição de trabalhador. É a consciência desta condição, da inserção num determinado modo de produção, que o torna um igual, um trabalhador coletivo, solidário, diríamos, encontrado tanto nas corporações de ofício que reuniam os artesãos da Idade Média, quanto nas senzalas, nas oficinas, nas minas, nas tribos indígenas, nas portas de fábricas ou nos sindicatos de operários e de outros trabalhadores assalariados que povoaram os últimos séculos até os dias de hoje. Ele construiu sua identidade nos afazeres domésticos, nos engenhos de cana-de-açúcar, nas minas de ouro, nas oficinas, nas fábricas e nos movimentos sociais. Ele agora é coletivo, é classe, é organização em busca de justiça e transformação social. Ele pensa coletivamente, ele sente coletivamente, ele constrói coletivamente suas estratégias e sua história.
                        
É a consciência das suas condições de vida e de seu lugar social que, ao aproximá-lo dos seus iguais, do coletivo, torna possível a transformação e a justiça social. Entendido, aqui, por coletivo um sentido específico do termo, ou seja, condicionado e definido pela organização em questão.
                        
Grande parte da sociologia tem como referência esse trabalhador. Ela refuta os modelos de análise das relações de trabalho fundadas no conformismo, na evolução natural das coisas, na organicidade das relações, na harmonia como destino, e nega o natural como matriz das relações sociais.
                   
O Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte por meio das peças, ferramentas, máquinas e utensílios pertencentes ao seu acervo, nos permite olhar para este trabalhador em diferentes momentos históricos. Ele nos possibilita a revelação do seu modo de ser, de viver e de produzir na sociedade escravocrata ou livre. Ele nos permite antevê-lo na medida em que registra os seus últimos gestos que precedem a separação capital/trabalho. Os últimos gestos inteiros, plenos de autonomia, ação livre e criativa, antes de parcelar-se, de tornar-se um complemento repetitivo da máquina.
                        
Ele nos permite antever ao longo do tempo vivido e da história, a organização do trabalho transformar-se e voltar-se contra o trabalhador. E, ainda, o saber e o saber-fazer desintegrarem-se e a escapar-lhe o controle sobre o processo de trabalho. Ele nos permite antever o trabalho esmigalhar-se levando consigo muitos ofícios.
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O que dizem os gestos dos trabalhadores sobre eles mesmos? Eles falam do homem pleno de motivações, pensamentos e desejos, movido por crenças e valores, por princípios morais e religiosos. Eles falam de diferentes habilidades, diferentes capacidades intelectuais e cognitivas e, portanto, de diferentes modos de ser e de viver, de intervir na natureza e com ela se relacionar. Eles falam, sobretudo, da sua capacidade de criar.
                        
Quem é o homem que faz cestos, prepara a farinha ou controla máquinas e processos sofisticados na indústria automatizada? O que pensa e sente? Como intervém? Com que recursos emocionais, intelectuais e cognitivos conta? Quais são os seus saberes? Como aprendeu a fazer e a ser?
                        
Sua ação expressa a capacidade de aprender a aprender, de articular e mobilizar saberes, de decidir. Ele dá forma aos objetos, sequência às operações, ritmo ao trabalho e às máquinas, ele lida com as incertezas, antecipa-se às panes, produz um projeto de trabalho, um sistema de produção.
                        
Assim, um mesmo ofício, um mesmo posto de trabalho, as mesmas ferramentas não são suficientes para encobrir as diferenças entre os trabalhadores, sejam eles os artesãos da idade média, sejam eles os operários da indústria automatizada dos dias atuais.
                        
Essas diferenças reclamam uma identidade construída além do espaço de trabalho, nas igrejas, nas ruas, nos bares, na família, nas confraternizações, no lazer...
                        
Ele não é um trabalhador, apenas. Ele não é uma "comodite". No seu embate cotidiano, na luta pela sobrevivência, ele descobre que a oposição não é um campo econômico e, portanto, há sempre algo que não pode ser negociado, que não pode ser vendido, que não pode ser conseguido.
                        
A justiça que ele reclama não é, desta forma, um equilíbrio entre quantidades economicamente dimensionadas, ela vai além e tangencia a sua subjetividade.
                        
Os gestos dos trabalhadores falam, então, de indivíduos que reclamam a identidade de homem, de sujeitos cuja ação socialmente motivada transforma o mundo.
                        
Voltemos a Galileu Galilei. O mundo é transformado graças, também, a pessoas como ele que, na solidão da noite, volta o olhar para o céu. Um olhar diferente de todos de até então, um olhar que inventa as ciências modernas[6] e revoluciona social e politicamente o mundo.
                        
O museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte está pleno de homens e mulheres assim. Ainda que deles tenham restado apenas alguns apetrechos de trabalho, podemos vê-los em cada pequeno detalhe das peças. Podemos vê-los na dobra do avental de couro que copia o corpo do coureiro, na marca de mãos no rodo que espalha a farinha no forno, no trançado das cestarias. Ainda que a história tenha sido apenas discreta para com eles, eles estão lá, eles criaram, inventaram, transformaram o mundo. Eles são trabalhadores, são também os visitantes do museu, passageiros apressados rumo ao trabalho, desempregados, desocupados, estudantes, curiosos, apaixonados, viajantes do trem-de-ferro, moradores do campo e da cidade. É preciso apenas olhos para vê-los.




[1] KOSIK, K. Dialética do concreto. S.Paulo: Ed. Paz e Terra, 1976, p.187
[2] TAYLOR, F. W. Princípios de Administração Científica. S. Paulo: Ed. Atlas, 1987, 130p.
[3] NAVILLE, P. Essai sur la qualification du travail. Paris: Librarie Marcel Rivière et cie, 1956, 148p. (Coll. Recherches de Sociologie du travail).
[4] TOURAINE, A. "Préface". COSTER, M., PICHAULT, F. Traité de sociologie du travail. Bruxelles, De BOECK Université, 1994, 551p.  
[5] FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité. tome 1: "La volonté de savoir". Paris: Gallimart, 1994, p.36.
[6] STENGERS, I. A invenção das ciências modernas. S.Paulo: Editora 34, 2002.



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