Antônio de Pádua Nunes Tomasi
Revista Extensão & Comunidade - CEFET-MG, Belo Horizonte, vol. 1, n.1,
p. 28-33, nov. 2014.
É quase mar. As águas começam nos
nossos pés e parecem tocar o infinito. Fechamos os olhos e o barulho das ondas
nos dá a certeza de que estamos no mar. Mas qual, o quê? O mar está longe,
muito longe. Toda a água que vemos, um mundão de água doce, vai pra lá, pra
longe, pra bem longe. Águas da bacia amazônica, que escoam densamente e enchem
o mar. É assim dia e noite.
É desse mar que sai a comida dos
ribeirinhos e ilhéus que habitam a região de Barcarena, no Pará, desembocadura
da bacia amazônica. É Pacu, Filhote, Apapá, Aruanã, Barbado, Bicuda, Cachorra,
Curimatã, Curimbatá, Gurijuba, Jatuarana, Piramutaba, Piranha, Pirarara, Pirarucu, Jaú e tantos outros peixes. É preciso não esquecer o peixe boi, o
boto e nem o camarão e outros bichos e mariscos em abundância.
É desse mar que saem as lendas,
que organizam e dão sentido à vida de mulheres, homens e crianças. O Boto, belo
cavalheiro finamente vestido de branco, encanta as moças nas noites da
Amazônia. A Cobra Grande afunda barcos e devora barqueiros. A jovem índia Naiá,
transformada por Jaci, a lua, na Vitória-Régia, enfeita a Amazônia. Histórias de outro mundo. Crença e fé religiosa se
misturam. Valei-nos Virgem de Nazaré, gritam os navegantes diante dos perigos
das águas do Pará. Outubro é tempo de pagar promessas e de renovar esperanças.
Milhões de viventes se juntam em preces e no esforço de puxar a corda que
conduz o Círio de Nazaré pelas ruas de Belém.
Fervorosos viventes,
herdeiros da força, da coragem e da resistência dos cabanos, gente pobre, quase
miserável, cuja revolta, conhecida como “A Cabanagem" (1835-1840), fez história na província de Grão-Pará e no Brasil.
Encosta o mar
de água doce na várzea, que guarda casinhas coloridas, mal escondidas por açaizeiros.
Diante delas dezenas de armadilhas de camarão e linhas de pesca prometem o
almoço. Crianças saltam de pequenos barcos, quase pirogas, e mergulham nas
águas a despeito de perigos. Elas vivem na água. Aprendem a nadar antes mesmo
de aprender a andar.
É a várzea e a terra firme que complementam
o que o “mar” lhes oferece. A terra é
farta em frutas. Além do açaí tem araçá-boi, buriti, pupunha, cupuaçu, graviola,
tucumã, bacuri, muruci, taperebá, castanha, pequiá... Na terra firme eles
colhem a mandioca que dá origem a dezenas de tipos de farinha. O açaí com
farinha de tapioca, peixe ou camarão é comida de todos os dias do povo do
lugar. Mais longe das ilhas, no continente, é comida de quase sempre, também, a
maniçoba, o pato no tucupi e o tacacá.
A terra é farta em plantas, óleos
e ervas de toda natureza. Do meio da mata saem remédios para todos os males do
corpo e da alma, gostos que enfeitam paladares, perfumes que seduzem o mundo:
copaíba, andiroba, guaraná, cipó miraruíra, cipó unha de gato, urucu, marapuama,
pataqueira, catinga de mulata, estoraque, pau-rosa, puxuri, copaíba, preciosa,
macacaporanga, cumaru, priprioca, muru-muru e tantas outras. A folha de
jambu, que dá uma dormência na boca quando a mastigamos, é erva obrigatória na
cozinha paraense, é remédio do povo, que também a aprecia sabiamente na
cachaça.
Araras, papagaios e outros
pássaros coloridos cortam o céu sobre a floresta que esconde dos olhos do homem
as preguiças, quatis, capivaras, jacarés, sucuris, onças, macacos, tartarugas,
ariranhas e tantos outros animais. E que esconde, também, o uirapuru com o seu
canto de rara audição.
E da terra, das suas entranhas,
afloram adormecidas riquezas minerais: hematita, cassiterita, bauxita,
pirolusita, ouro, nióbio, titânio, urânio, sal, calcário, barita, areia,
caulim, níquel, chumbo, cobre, zinco e muito mais. Empresas de todo mundo
lá se instalam. Operários e barulhentas máquinas gigantes entram floresta adentro
no trabalho de prospecção, extração e transformação das riquezas.
Aqui, no sul maravilha, onde uma
neblina suspeita rodeia arranha-céus e entra pulmão adentro de seus habitantes,
quase nada se ouve além do barulho dos reluzentes automóveis, que enchem ruas e
avenidas das cidades. Quase nada se ouve além do barulho de gente correndo, sabe
Deus pra onde. Daqui não se ouve o barulho de lá, das máquinas que bufam na
Amazônia. Nem se vê o verde que para
sempre ganha a cor amarronzada do chão e desaparece. Daqui, diante da TV, mal se
tem ideia do que vem a ser a Amazônia, uma parte do Brasil, da qual sempre
ouvimos falar, mas não conhecemos. Mas para conhecer mesmo, de verdade, o que é
a Amazônia, é preciso ir lá e tocar o paraíso, o inferno verde, como a
denominou o engenheiro Alberto Rangel em sua obra literária de 1908, ou o que
ainda resta dela.
Cerca de 50 alunos dos três
níveis de ensino do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais –
CEFET-MG conhecem o paraíso ou o inferno verde. Uma vez por ano e desde 2010 um
punhado deles participa da OPERAÇÃO AMAZÔNIA, uma das atividades acadêmicas do
Grupo de Pesquisa Programa de Estudos em Engenharia, Sociedade e Tecnologia –
PROGEST que acontece em meio à floresta amazônica. Eles embarcam nas rabetas,
pequenas embarcações a motor que cortam os muitos rios, igarapés, igapós e
furos das ilhas da bacia amazônica na região de Barcarena e se deslumbram com a
força e a beleza da natureza. Depois de horas subindo as águas, navegando uma
parte do Brasil, ouvindo os ensurdecedores popopôs dos motores das rabetas,
suando em bicas dentro de coloridos coletes salva-vidas, eles desembarcam nas
ilhas. Aportam nas escolas, nas associações comunitárias, nas pequenas casas de
gente quase índia, quase branca, uma mágica mistura que dá brilho à vida das comunidades
locais e às suas crianças, seres sorridentes e aquáticos.
No almoço não falta açaí e nem camarão,
colhidos, batidos e pescados na hora; nem a farinha de tapioca, branca e leve,
com um surpreendente e maravilhoso gosto de nada. Agradecidos e em troca, os
alunos do CEFET-MG oferecem saberes do mundo científico e tecnológico e a força
da sua juventude.
Em salas de aula improvisadas
eles dividem com jovens e adultos das comunidades de ribeirinhos e de ilhéus o
que aprenderam na escola e fora dela: um outro modo de pensar, uma
racionalidade que dá sentido e torna compreensível cálculos, medidas, projetos
e fabricação de coisas. Pelas mãos de todos, edificações são renovadas ou
melhoradas. Novos conhecimentos e mesmo ofícios se esboçam nos saberes e gestos
aprendidos e treinados pelos meninos e meninas do PROGEST e pela gente do lugar.
Mas os meninos e meninas do
PROGEST aprendem, também, com as comunidades, um outro modo de viver, de pensar
e de construir a realidade. Aprendem a preparar a poqueca, uma mistura de babaçu com
coco ralado embrulhada em folha de guarumã. O pequeno embrulho dentro do
matapi, uma armadilha fixa, uma espécie de gaiola cilíndrica confeccionada com
miriti, fibra vegetal abundante na região, é uma excelente isca para pegar
camarão. Eles aprendem a coletar, a medir e a transportar em rasas, e a bater o
açaí. Eles aprendem a ralar a mandioca, a encher o tipiti de massa, a escorrer
a água e fazer a farinha. Eles aprendem tantas coisas!
Juntos, eles compartilham saberes
e constroem novos conhecimentos. Aos poucos eles aprendem que os problemas da
Amazônia, de seu povo e de toda a sociedade brasileira são ainda maiores e
plenos de contradição. E são tão maiores, quanto menor é a atenção que damos a
eles.
Comunidades inteiras morrem de
sede, rodeadas de água por todos os lados. Sem energia elétrica para iluminar
as casas e as salas de aula, para movimentar as máquinas que batem o açaí, para
fazer gelo e manter conservado o açaí batido, a pesca ou o alimento do dia,
comunidades inteiras vivem na escuridão da noite, intoxicadas pelo querosene
das lamparinas, no desconforto e no esquecimento dos tempos dos cabanos.
Estudar as condições locais,
projetar e executar uma estação de tratamento de águas e um gerador alternativo
de energia elétrica é o desafio e o compromisso de estudantes do PROGEST.
Mas como tratar a água que corre
lentamente nos igarapés e rios? A água parece ser imprópria ao consumo,
contaminada por dejetos de toda sorte, trazidos pela modernidade do sul
maravilha e do resto do mundo. Estações de tratamento de água não são uma
novidade científica ou tecnológica, mas como dimensioná-la de forma a atender
as demandas e as condições locais?
Como produzir energia em condições
tão desfavoráveis? Nada de quedas d’água, nada de vento e um céu quase sempre
encoberto por nuvens, que despencam do alto todos os dias dividindo a vida dos
paraenses no antes e no depois das chuvas. Que desafio!
Se os painéis fotovoltaicos não
são suficientes para produzir a energia que precisamos, pensam os meninos e
meninas do CEFET-MG, podemos queimar os caroços de açaí, aquecer uma caldeira,
fazer funcionar uma turbina e, pronto. Aí está a energia que precisamos. Mas
como organizar ideias, fazer escolhas, elaborar projetos e construir protótipos?
Como materializar uma ideia? Mãos à obra. É trabalho duro de corações e mentes de
jovens estudantes, quase crianças, em meio a um calor úmido e estafante. Eles
tomam nota de tudo, entrevistam o povo do lugar e fazem registros para estudos
e publicações futuras.
Fim do dia. Ainda com o barulho dos
motores das rabetas em suas cabeças, com os corpos exaustos e cobertos de suor,
meninos e meninas do PROGEST mergulham nas águas claras da piscina do hotel,
que os abriga em plena selva. Um descanso merecido. São mais seguras as águas
da piscina do que as do “mar”, que ficam logo em frente ao hotel. _ Ninguém
entra no “mar”, são as ordens. Suas águas guardam perigos. Mas qual, o quê? As
ondas, a areia, a brisa, as mesas do restaurante do hotel com sombrinhas
coloridas... Tudo lembra o mar, o mar de verdade. A desobediência é inevitável.
Todo mundo na água, na água do “mar”. Não demorou e de longe se ouviu gritos. Em
seguida, um corre-corre. Os desobedientes saem da água num galope e atrás deles
há um rastro de sangue. O ferrão de uma arraia havia furado o calcanhar de um
dos meninos. Uma dor dos diabos. Correria para o hospital. E lá tem médico, tem
pequena cirurgia, tem curativo e injeção. Noites sem dormir e pernas para o
alto. Vai voltar pra casa mancando. Dito e feito.
De volta a BH, no aeroporto de Confins,
com a perna encolhida e amparado por dois dos companheiros de desobediência, o
menino ainda esboça alguma dor. Desconjuntado, mal conseguia ficar de pé. Um
dos meninos, o mais menino deles, o último a desembarcar, parou e bem de perto olhou
para o coitado e maliciosamente asseverou: _ Ô véio, de boa, isso não foi
arraia, não! A gargalhada foi geral. Estava chegando ao fim mais uma OPERAÇÃO AMAZÔNIA.