Antônio de Pádua Nunes Tomasi
Departamento de Engenharia Elétrica –
CEFET-MG
Mestrado em Educação Tecnológica –
CEFET-MG
Resumo:
O artigo trata de uma pedagogia
alternativa de formação de adultos, presente no CEFET-MG há quase 15 anos.
Alunos dos cursos de engenharia do CEFET-MG, denominados Formadores, oferecem
dois cursos de capacitação para operários da construção civil: gestão de obras
e instalações elétricas prediais. Os cursos fazem parte das atividades do grupo
de pesquisa Programa de Estudos em Engenharia, Sociedade e Tecnologia-PROGEST e
a partir deles são realizadas pesquisas que tratam da formação e da
qualificação profissional. Um entendimento próprio de educação e de escola,
fundamentado no pensamento de alguns pensadores que tratam o indivíduo como o
centro de atenção das práticas pedagógicas e da própria escola, ainda que em
permanente construção, é colocado em prática numa autogestão pedagógica. A
partir de pesquisas realizadas ou em curso pelo PROGEST são tratadas as
práticas pedagógicas e a gestão das atividades conduzidas pelos Formadores,
assim como os conflitos delas advindas gerados na Instituição.
1 A EDUCAÇÃO, A
ESCOLA E A FORMAÇÃO DE ADULTOS EM QUESTÃO
A escola é espaço privilegiado de debate,
de reflexão e de críticas que partem das mais diversas correntes de pensamento
e ideologias, construindo e desconstruindo permanentemente o seu papel como
instituição e o conceito de educação. Para uns, a escola é o lugar onde
acontece a transmissão de saberes, a construção de conhecimentos e a
apropriação de valores éticos e morais, que permitem aos indivíduos o
desenvolvimento de habilidades manuais, intelectuais e a construção da sua
cidadania, inserindo-os na vida em sociedade e no mundo do trabalho.
Para outros, a escola é tão somente o
lugar onde acontece a aprendizagem e a transmissão de saberes que importam ao
mercado. Despolitizada, esvaziada de valores éticos e morais ou valores outros,
como se assim fosse possível, ela consubstancia o entendimento de educação de
alguns e abre caminho para os que, no extremo deste espectro
político/ideológico, demandam, por exemplo, uma Escola sem Partido, como
assistimos na atualidade.
O debate vai além e questiona não apenas
onde, mas, também, como acontece a educação na escola. Quais conteúdos? Quais
relações e que valores sociais? Quais práticas pedagógicas? Não estamos nos
referindo a um debate que se encerra nas fronteiras brasileiras. Longe de
posicionamentos extremados, ainda que discordantes, tanto a Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura — UNESCO quanto a Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico — OCDE balizam entendimentos de
educação e, por conseguinte, de escola e dão o tom de uma discussão que
atravessa fronteiras. Resumidamente, enquanto a primeira se preocupa com uma
formação humanística e cidadã, tendo o indivíduo, o educando e o trabalhador
como referência, a segunda tem sua atenção voltada para o desenvolvimento
econômico das nações, o desenvolvimento de habilidades dos educandos e de
empregabilidade dos trabalhadores.
Tal discordância, registre-se, guarda todo
o debate que se coloca no plano da política, da psicologia e da sociologia da
educação e do trabalho, da economia, da pedagogia, das ciências da educação e
de campos do conhecimento fronteiriços. Assim, se ambos os organismos
internacionais reclamam um aumento da escolaridade dos jovens de todo o mundo,
e a OCDE[1],
por exemplo, em seu relatório de 2017 expõe o baixo
investimento no ensino básico brasileiro, não é de se esperar que demandem um
aumento da escolaridade pelos mesmos motivos e nem que essa escolaridade se
desenvolva da mesma forma, portando os mesmos conteúdos, valores etc.
Não é difícil perceber que entendimentos
diferentes de educação e da escola nos conduzem a interesses diversos de
indivíduos, de grupos e/ou de classes sociais. Mas, em última instância, não é
difícil também perceber que, em grande medida, alguns interesses repousam sobre
a divisão técnica e social do trabalho. Uma divisão que aponta quem faz o quê e
que lugar ocupa na sociedade, que constrói hierarquias, estabelece classes
sociais e relações de dominação, viabiliza a separação entre trabalho manual e
intelectual, e entre teoria e prática em oposição à educação omnilateral. Outros,
ao contrário, buscam a superação desta divisão. Logo, estamos diante de
entendimentos que vão desde a escola como sendo o lugar onde, tão somente, se
desenvolve habilidades que atendam à empregabilidade dos indivíduos e ao
desenvolvimento econômico do país e de mercado, até de entendimentos que veem a
educação como libertadora dos indivíduos e promotora do seu desenvolvimento em
todas as dimensões da vida humana. Que implicações, então, no plano societário,
teriam entendimentos tão diferentes de escola e de educação? Uma primeira
resposta a esta questão e, possivelmente, a de maior relevância é a que aponta
para a desigualdade social ou para a sua superação, num compromisso com os
indivíduos, a democracia e a justiça social.
Segundo Pesce e Audebrand, ao se referirem
à pedagogia alternativa de adultos e justiça social, numa tradução livre, “trata-se
de reconhecer que certos grupos da população devem ser apoiados de maneira
particular para que possam remediar dificuldades estruturais que eles encontram
no exercício de certos direitos.” (Pesce & Audebrand, 2010)[2]. Vale a pena lembrar, o que é de conhecimento antigo da
academia, que a escola reproduz as desigualdades sociais (Bourdieu, 1992). E,
não obstante todo conhecimento e crítica que se tem a respeito, a escola
continua a reproduzir as desigualdades sociais
e a conviver com as injustiças sociais. E este pode ser certamente um dos mais
vivos indicadores do embate acirrado entre indivíduos, grupos e/ou classes
sociais, entre capital e trabalho, que se faz, inclusive, em terrenos outros,
que não apenas no das políticas públicas de educação, mas também no interior da
sociedade e da própria escola, via práticas pedagógicas que tratam das relações
professor/aluno e mesmo da gestão escolar, que não escapam, de certo, de um
viés também ideológico.
Para lembrar Lowy (1975), a ideologia não
é como os óculos escuros que podem ser retirados para se ver mais claro, mas é
como o estrabismo, faz parte do olhar. Em outras palavras, estamos diante de um
embate mais aguerrido, mais escamoteado e mais sutil do que se possa imaginar.
Políticas públicas de educação, acompanhadas de outras políticas sociais ou
apoiadas em legislação específica, podem ser um dos instrumentos mais efetivos
utilizados pelo Estado para a manutenção dessas desigualdades ou mesmo
aumentá-las. É bem verdade que essas mesmas políticas poderiam atuar no sentido
contrário, todavia, não é isto que se assiste, pelo menos no Brasil.
Um rápido olhar sobre a legislação
brasileira destinada à educação pode nos mostrar o caminho que a educação e a
escola brasileira têm tomado ao longo do tempo. A lei Federal 13.415/2017,
conhecida como reforma do ensino médio, coloca em segundo plano a formação
humanística dos jovens. A reforma, escondida sob o manto do direito do aluno e
de sua família de conduzirem sua formação segundo seu interesse e ou “vocação”,
atrela a educação e a escola brasileira, muito mais aos interesses do mercado
do que, realmente, aos interesses dos indivíduos ou mesmo da sociedade. Na
verdade, restringe a educação para os jovens mais pobres, enquanto favorece os
jovens mais ricos.
Nas últimas décadas, sobretudo com o
avanço do ensino privado em todos os níveis, disseminou-se a ideia da educação
como mercadoria e não como um bem e, portanto, do aluno/cliente e do
professor/prestador de serviço. A escola passa a formar alunos para um mercado
em permanente mutação e não mais para a sociedade. Esta escola nunca esteve tão
próxima da fábrica e do escritório. Tornou-se sua antessala, lugar onde se
prepara o indivíduo para adaptação a este mercado. E isto não é tudo. As
políticas públicas de educação e suas reformas do ensino, travestidas das
melhores intenções, podem, pelo viés do mérito, transferir da escola para o
aluno a responsabilidade pelas desigualdades e sua reprodução. Aos bem
sucedidos, um lugar no mercado de trabalho, uma maior empregabilidade; aos
fracassados, o desemprego, a precariedade e a exclusão. Pronto. Eis a fórmula
para responsabilizar o aluno pelo fracasso escolar e o trabalhador pelo
desemprego.
Mas se as políticas públicas de educação
insistem em abrir caminhos para reprodução das desigualdades e naturalizar as
injustiças sociais, é no interior da escola que elas são, em grande parte,
forjadas, ocupam corações e mentes e ganham os caminhos da sociedade e do mundo
do trabalho. A escola igualitária, de massa ou democrática francesa é um
exemplo disso. A classe operária francesa (leia-se imigrantes e descendentes,
em grande número) se perpetua pela via do fracasso escolar dos seus filhos.
Incapazes de avançar no ensino propedêutico, porque as condições que possuem
fora da escola (baixa escolaridade e renda familiar ou referências
profissionais e socioculturais avessas à continuidade nos estudos) não
favorecem o seu bom desempenho escolar, eles são empurrados para a formação
técnica e/ou profissionalizante sob o argumento de que lhes faltou mérito ou
fracassaram (Dubet, 1992, 2001, 2003).
Na verdade, o fracasso se mostra muito
mais nitidamente visível nas condições precárias em que se encontram do que,
propriamente, na ausência de mérito dos alunos (Charlot, 2000). Na França, uma
escola igualitária, de massa ou democrática, acaba por esconder uma escola que
traça futuros e destinos profissionais diferentes para os seus alunos, filhos
da classe operária ou da elite francesa. Os conhecidos “Lycées professionnelles
et techniques” et “Lycées générales” expõem essa escola, que separa os jovens
pelo “mérito” (Tomasi & Ferreira, 2011).
Na experiência brasileira, não há como
esconder. As escolas para os pobres e para a elite estão bem visíveis e
delimitadas (Libâneo, 2012). A universalização do ensino no Brasil, e não a
democratização da educação, como na França, produziu resultados semelhantes
(Tomasi & Ferreira, 2013). Muito embora a escola brasileira possa conferir
certificação e diplomas iguais ou de igual valor legal, um mesmo diploma referente
ao ensino fundamental, médio ou mesmo do ensino superior, não corresponde aos
saberes de seus portadores, se cursaram escolas para os pobres ou para a elite
(Oliveira & Oliveira, 2011).
Na França, como de resto nos países
industrializados, dentre eles o Brasil, os destinos profissionais dos jovens,
em especial os mais pobres, parecem ser ainda mais atrelados aos interesses do
mercado. Lá, pelo fracasso escolar e aqui pela “ausência” da escola. Ausência,
seja porque o ensino na escola para pobres não corresponde ao oferecido nas
escolas para a elite, seja porque a presença na escola pelo aluno é
entrecortada e marcada por descontinuidades (Tomasi & Fonseca, 2017). E
ausência ou a quase ausência, porque o ensino profissionalizante e o técnico no
país, não obstante o aumento dessas escolas no período de 2002 a 2016[3]
é ainda insuficiente em número de escolas e de vagas
para atender a demanda.
O ensino profissionalizante assumido pelo
Estado brasileiro, ainda no início do século passado (1909), herda o antigo
entendimento de que ele se destina aos “desvalidos da sorte”[4], cujas cabeças deveriam
ser preenchidas com algo útil, para que não se tornassem “oficinas do diabo”.
Está posta, pois, a chamada escola dual, que reserva aos filhos do povo a
formação profissional e aos da elite o ensino propedêutico. E por mais
paradoxal que possa parecer, sorte terá o jovem pobre que conseguir uma vaga
numa das escolas técnicas federais[5].
Estas escolas têm procurado construir aos poucos, ao
longo do tempo e com relativo sucesso, um modelo de ensino que procura formar
não apenas o jovem trabalhador, mas também o cidadão, e isto à custa de lutas
contra as intervenções externas de governo, de mercado e mesmo de famílias dos
educandos, que preocupadas com a empregabilidade de seus filhos demandam uma
formação profissional mais adaptada ao mercado. Mas uma luta, também, contra
resistências internas à escola (professores, gestão pedagógica, de ensino e
administrativa) que associam de forma automática a formação e a qualificação
profissional que deve acontecer na escola à demandada pelo mercado. Em outras
palavras, no plano da formação e da qualificação profissional, a escola acaba
por se submeter às demandas do mercado/posto de trabalho.
Prevalece, assim, sem que por vezes se dê
conta, uma qualificação construída à luz do modelo taylorista/fordista, que
reconhece apenas os saberes e as habilidades que portam os trabalhadores, como
se substâncias fossem (Friedmann, 1946, 1950), e são os demandados pelo posto
de trabalho. Logo, não se trata da qualificação do trabalhador, mas do posto de
trabalho. Naville (1956, 1963), um ferrenho crítico desta qualificação e da
escola que a promovia, se bateu por uma qualificação dos indivíduos, que se
traduz pelo reconhecimento de todos os seus saberes e habilidades, construídos
ao longo de sua vida.
O esgotamento do referido modelo, ainda
que persista em grande parte da indústria, e a emergência dos novos modelos
organizacionais, mais adaptados à produção flexível e a outras demandas dos
setores produtivos, passam a demandar dos trabalhadores não mais, ou melhor,
não apenas a qualificação, mas a competência, cabendo à escola desenvolvê-la em
seus alunos. O alargamento dos postos de trabalho, sobrepondo-se uns aos
outros, bem como a ampliação de seus conteúdos ou de saberes por eles
demandados, numa adaptação à produção flexível e enxuta, passaram a exigir dos
trabalhadores outros saberes e/ou habilidades: saber trabalhar em grupo e
relacionar-se com os colegas, antecipar-se aos problemas ou ter iniciativas,
assumir responsabilidades etc.
Assim, diferentemente do que acontecia num
passado não tão distante, quando predominava o modelo taylorista/fordista,
referência da qualificação, passou-se a recorrer à subjetividade ou ao saber
ser do trabalhador, referência das competências, e a desafiar a escola no que
diz respeito à sua formação. Um desafio que parece se limitar a como continuar
atendendo ao mercado com suas novas demandas, confrontado, inclusive, pelo fato
dela não saber se é capaz de formar trabalhadores competentes. Pode a escola
formar trabalhadores competentes? Sobre isto ainda sabemos pouco ou quase nada.
Na verdade, os trabalhadores sempre foram
competentes, virtuosos, como nos ensina Naville (1956) ao questionar o conceito
de qualificação construído à luz dos saberes demandados pelo posto de trabalho
e não à dos saberes dos trabalhadores. Uma competência que foi suprimida e não
reconhecida pelo modelo taylorista/fordista, que não via ou se recusava a
remunerar qualquer saber do trabalhador que não fosse o balizado pelo posto de
trabalho e que, para ocupar o seu lugar, criou a qualificação, que agora
aparece travestida de competência, como se competência
fosse[6].
Assim, se as instituições públicas de
ensino — dentre elas ressalte-se os Centro Federais de Educação Tecnológica - CEFETs[7]
e os Institutos Federais - IFs — são, de modo geral,
uma prova de que a escola pode, por ação do seu corpo docente e organismos
internos, resistir e limitar ao máximo as intervenções externas, isso não
significa que eles não tenham, como outras escolas, um entendimento próprio de
educação e da sua função forjados à luz dos entendimentos e interesses da
própria comunidade escolar ou acadêmica, muito especialmente de seu corpo
docente e da sua gestão.
Os entendimentos, práticas pedagógicas e
interesses produzidos por eles não estão, todavia, ao abrigo de críticas.
Práticas pedagógicas focadas no ensinar e não no aprender ou em quem ensina e
não em quem aprende Freire (2009), na incapacidade de reconhecer nos alunos
experiências mal construídas e reconstruí-las à luz dos conhecimentos
científicos Bachelard (1996), no investimento na passividade do aluno e não no
desenvolvimento da sua autonomia Freire (2009), na empregabilidade e não no
desejo do educando, na relação professor/aluno, gestão/educação unilateral e
autoritária e não democrática, são as críticas mais frequentes à escola.
Práticas pedagógicas que priorizam o ensinar em detrimento do aprender, que
procuram conformar o educando e, por conseguinte, as relações professor/aluno e
a própria gestão da instituição a esta prioridade distancia a escola dos
interesses, dos desejos e das referências sociais e culturais dos que dela mais
precisam para incluírem-se socialmente e para construírem sua cidadania (Cruz,
2008). Essas práticas pedagógicas parecem se mostrar muito mais efetivas no
controle dos indivíduos, da sua energia, dos seus desejos e potencial humano,
para inculcar-lhes saberes e valores referenciados pelo mercado, do que
propriamente no desenvolvimento da sua criatividade e da sua autonomia.
A criatividade e a autonomia ficam
reservadas a alguns. Aos demais, se reserva a adaptação e a passividade. Na
verdade, não há aqui qualquer novidade no que está dito. Ao longo do tempo são
inúmeras as críticas que apontam a condição dos alunos de simples expectadores
e não importa se em cursos propedêuticos ou técnicos.
Mas as críticas têm apontado, também,
caminhos. A educação continuada, por exemplo, que pode limitar-se a uma coleção
de certificados e diplomas, cujos conteúdos se limitariam aos demandados pelo
mercado, opõe-se à formação ao longo da vida Merieu (2005), cujos conteúdos
respondem a demandas dos indivíduos e a certificação não faz parte de uma
coleção de documentos a serem valorizados pelo mercado. À separação teoria e
prática aponta-se a formação em alternância, em que escola e empresa,
desenvolvem um projeto de formação profissional centrado no educando (Monaco, 1993)[8].
No Brasil e em muitos outros países,
pedagogias alternativas ganham relevância e se colocam como complementares às
pedagogias tradicionais e por vezes procuram encontrar um ponto de equilíbrio
entre entendimentos como os da UNESCO e da OCDE. Este parece ser o caso de Lima
(2007), ao se reportar ao poema “O sim contra o sim” do poeta brasileiro João
Cabral de Melo Neto em seu livro Serial (1959-1961), que trata poeticamente de
um impasse vivido pelo escultor e pintor Joan Miró, para quem a mão direita era
de tal forma sábia e destra que não mais era capaz de se reinventar, enquanto a
esquerda, menos hábil e menos óbvia, era mais criativa e desejosa de aprender: “Miró
sentia a mão direita demasiado sábia e que de saber tanto já não podia inventar
nada.” Nesta mesma obra o poeta brasileiro se compadece poeticamente, também,
do pintor holandês Piet Mondrian: “Mondrian, também, da mão direita andava
desgostado; não por ela ser sábia: porque sendo sábia era fácil”.
Não nos parece claro, contudo, que se
trate de encontrar um ponto de equilíbrio entre uma mão e outra, como parece
querer Lima ao se referir a um projeto de uma educação ao longo da vida, nas
palavras dele “ambidestro”. Vejamos o que diz: “Reconhece-se, em todo o caso,
que um certo grau de adaptação é inerente a qualquer projeto de formação ao
longo da vida...” p.10.
As pedagogias alternativas, contudo,
parecem ganhar mais sentido, criar e inovar muito mais no permanente estado de
desequilíbrio, de mudanças e críticas do que na estabilidade ou no equilíbrio e
longe de referências tanto da UNESCO quanto da OCDE.
Pedagogias alternativas florescem em todo
lugar e têm propósitos e referências teóricometodológicas e mesmo empíricas
diversas (Casanova & Pesce, 2010). Por vezes, elas podem se prestar a
atender ao ensino privado na busca de um nicho no mercado do ensino. Por vezes,
por puro modismo, mas por vezes, também, na busca de uma educação centrada no
indivíduo, voltada para a sociedade, que contribua com a redução da
desigualdade social e comprometida com a justiça social. A experiência descrita
a seguir, uma pedagogia alternativa na formação de operários adultos e,
simultaneamente, de jovens alunos dos cursos de engenharia do CEFET-MG, é mais
uma dessas pedagogias que procuram centrar no aluno e não no professor, no
aprender e não no ensinar, no aprender a aprender, no desenvolvimento das
autonomias e na cidadania dos educandos e, muito especialmente, na redução das
desigualdades sociais e na justiça social. Trata-se de formar adultos,
profissionais competentes (jovens alunos dos cursos de engenharia do CEFET-MG e
operários da construção civil); não no sentido entendido pelo mercado, ou seja,
a capacidade de responder a um posto de trabalho cada vez mais amplo e
complexo, mas, diferentemente disso, uma competência que o coloca acima ou além
das demandas do mercado — ainda que a ele possa atender — e tenha como
referência os seus direitos como trabalhador e cidadão. Uma formação
profissional inseparável da construção de uma consciência política.
2 UMA PEDAGOGIA
ALTERNATIVA NA FORMAÇÃO DE ADULTOS
No primeiro semestre de 2003 um grupo e
alunos do curso de Engenharia de Produção Civil do Centro Federal de Educação
Tecnológica de Minas Gerais – CEFET-MG e o professor destes mesmos alunos,
responsável pela disciplina Sistemas de Produção I e II, criaram um curso de
Gestão de Obras para capacitar operários trabalhadores da construção civil,
sobretudo, na gestão dos trabalhos de canteiros de obras que são, também, de
responsabilidade de encarregados e de mestres de obras. O curso, que se mantém
até os dias atuais, tem um total de 240h e é dividido em dois módulos
oferecidos em semestres seguidos: Módulo I: 1. Núcleo Básico (30h): Matemática
Básica 18h, Linguagem para Fins Profissionais 12h; 2. Núcleo Técnico (80h):
Materiais de Construção 20h, Leitura de Projetos Elétricos 20h, Leitura de
Projetos Hidrossanitários 20h, Leitura de Projetos Arquitetônicos 20h; 3.
Núcleo Gestor (10 h) Meio Ambiente 10h. Total de 120h. Módulo II: 1. Núcleo
Básico (20h): Informática Básica 20h; 2. Núcleo Técnico (30h): Tecnologia das
Construções 14h, Leitura de Projetos Estruturais 16h; 3. Núcleo Gestor (70h):
Gestão de Pessoas 14h, Logística, Arranjo e Fluxo 12h, Qualidade e
Produtividade 16h, Legislação Trabalhista 12h, Ergonomia e Segurança do
Trabalho 16. Total 120h.
No segundo semestre de 2008, alunos do
curso de Engenharia Elétrica criaram o curso Instalações Elétricas Prediais com
carga horária de 150h, com aulas também apenas aos sábados e num semestre, que
funciona até os dias atuais com a seguinte matriz curricular: 1. Núcleo Básico
(46h): Matemática 20, Informática Básica 16h, Linguagem para Fins Profissionais
10h; 2. Núcleo Técnico (74h): Interpretação de Projetos Elétricos 14h,
Eletricidade Básica 22h, Proteção de Instalações Elétricas 16h, Equipamentos e
Instalações Elétricas 16h, Instrumentos de Medição 6h; 3. Núcleo Gestor (10h):
Segurança em Instalações Elétricas 10h; 4. Núcleo Prático (20h): Prática em
Instalações Elétricas 12h, Prática em Eletricidade Básica 8h. Total 150h.
Muito embora predominem conteúdos
técnicos, tanto num como noutro curso, esses conteúdos não foram organizados
segundo demandas do mercado e seus postos de trabalho, mas pelos próprios
alunos, ouvindo os trabalhadores inscritos nos referidos cursos, mas também
tomando como referência a matriz curricular dos cursos de engenharia do CEFETMG
e aconselhamento de alguns professores. Mudanças nos conteúdos, contudo, são
frequentes, atendendo às demandas dos trabalhadores.
As mudanças que sofrem a construção civil
desde a virada do século XXI, muito especialmente no que diz respeito à
importância da gestão do trabalho e dos processos construtivos, ressaltam a
necessidade de um trabalhador melhor formado, tarefa que os alunos e o
professor aceitaram contribuir com a criação desses cursos de capacitação. Mas
fato é que os próprios trabalhadores trazem para os cursos suas indagações
sobre essas mudanças, e não apenas as que ocorrem nos canteiros de obras, mas
também longe deles ou no meio social em que vivem. Eles querem aprender, por
exemplo, um pouco de informática, querem saber navegar na internet e ter um
endereço eletrônico, e também aprender a linguagem usada pelos engenheiros
quando se referem à obra, aos processos construtivos, materiais, cálculos etc.
para poder dialogar com eles num mesmo nível. Eles querem deixar no passado o
“Quer que desenhe?”, frequentemente utilizado nas comunicações entre
engenheiros e operários e mesmo entre estes últimos, e que fica, inclusive,
registrado nas paredes das edificações. Eles querem manter um diálogo no mesmo
nível de entendimento. Mais do que isto, eles querem entender o que eles fazem
nos canteiros de obras e procuram os cursos em busca de uma explicação ou
teoria explicativa (Ferreira, 2011).
Se por um lado as mudanças e a disciplina
Sistemas de Produção explicitavam a necessidade de melhor formar os
trabalhadores do setor e motivava a criação dos cursos, por outro lado, era
esperado, também, o que se confirmou ao longo do tempo, que os cursos abrissem
um leque de oportunidades, tanto para os jovens alunos do CEFET-MG como para os
próprios operários. Muito embora os operários procurassem os cursos para
atender desejos próprios e não para atender às demandas de empresas ou do
mercado, a mobilidade profissional e outros ganhos obtidos com o curso eram e são
oportunidades aproveitadas por eles (Ferreira, 2011).
As oportunidades se estendiam, também, aos
alunos dos cursos de engenharia do CEFET-MG, que enriqueceriam a sua formação
profissional e cidadã e à própria Instituição, que faz justiça à sua origem,
intimamente associada à formação de operários.
A primeira oportunidade oferecida pelos
cursos era a de se devolver à sociedade e, muito especialmente, aos mais
desfavorecidos, o que dela se recebia na forma de um ensino público, gratuito e
de qualidade, o que contribuía para uma melhor capacitação dos trabalhadores do
setor e para fortalecer ou mesmo construir uma consciência social e política de
alunos do CEFET-MG. Alguns alunos são, inclusive, filhos de operários da
construção civil e compreendem bem a importância dos cursos, seja no que diz
respeito à aquisição de novos saberes, tanto deles, quanto dos trabalhadores,
seja na sua dimensão humana, social e política, contribuindo para a redução das
desigualdades e para a justiça social. Esta era a primeira preocupação que dava
sentido ao esforço de criação dos cursos.
A segunda era a de conhecer os
trabalhadores da construção civil com os quais os alunos do CEFET-MG conviverão
num futuro próximo. Ou seja, quem são (origem, formação e qualificação
profissional, saberes, como vivem, trabalham e se comportam etc.)? Ainda que
alguns alunos conhecessem bem estes trabalhadores porque com eles convivem nas
suas relações familiares, alguns outros não conhecem. Entrar no universo social
e cultural do outro é uma maneira de acessar um dado modo de vida, colocar em
questão a realidade e alguns valores éticos e morais.
A terceira era a de democratizar os
espaços públicos, no caso o próprio campus II do CEFETMG, abrindo suas portas
para os operários, para que eles ocupassem um espaço que, de direito, também
lhes pertence.
A quarta era a possibilidade de trocas de
saberes entre eles e a partir dessa troca, a construção conjunta de
conhecimentos. De um lado, os jovens alunos do curso de engenharia do CEFETMG
e, de outro lado, os trabalhadores. Os primeiros, portadores de saberes
predominantemente teóricos e os segundos de saberes práticos. As possibilidades
de trocas implicavam uma relação de igualdade e mesmo de cumplicidade entre os
alunos e os trabalhadores, ou seja, uma troca entre iguais, ainda que uma
distância entre eles se impusesse (idade, escolaridade, experiências etc.), o
curso impunha uma prática pedagógica diferente da exercida tradicionalmente
pela escola. Em outras palavras, o aluno do CEFET-MG que ministra o curso não é
um professor ou aquele que detém saberes e os transfere aos alunos, numa
relação entre desiguais, mas um formador Jobert (2006), ou seja, aquele que
cria as condições, fora e dentro da sala de aula, fazendo uso dos recursos que
lhes são disponibilizados ou que ele mesmo cria, por vezes num esforço de
inovação, para que o processo de aprendizagem aconteça, o que implica também a
posse de saberes e de conhecimentos próprios dos formadores.
A quinta era a de se construir
conhecimentos e de publicar saberes científicos sobre a formação e a
qualificação dos trabalhadores da construção civil, dos operários aos
engenheiros e outros profissionais, assim como dos próprios alunos do CEFET-MG
envolvidos com os cursos. Assim, aos saberes dos formadores, se acrescenta os
saberes relacionados às metodologias científicas e da pesquisa, disciplinas
estudadas nos cursos de engenharia da Instituição, e que são praticadas na
realização de pesquisas e publicação em revistas e congressos científicos. Essa
oportunidade acabou por alocar, a partir de 2008, os cursos no interior de um
grupo de pesquisa do CEFET-MG, devidamente credenciado pelo CNPq e denominado
Programa de Estudos em Engenharia, Sociedade e Tecnologia —PROGEST[9].
Tal medida aproximou, ainda mais os alunos dos
diferentes níveis de ensino da Instituição, com destaque para as atividades de
pesquisa dos estudantes do mestrado em Educação Tecnológica, mas também de
outros mestrados e doutorados, inclusive de outras Instituições de ensino
superior. Várias dissertações e teses já foram defendidas e artigos publicados
sobre a formação, qualificação profissional e desenvolvimento de competências
de alunos do CEFET-MG e trabalhadores envolvidos com as atividades do PROGEST.
Descobriu-se, mais tarde, que havia uma
sexta oportunidade, esta especificamente para os formadores, qual seja a de se
observar, experimentar ou vivenciar situações que reportavam todos às
disciplinas de psicologia, sociologia e filosofia da tecnologia, cujos
conteúdos poderiam ter mais sentido ou serem mais bem entendidos a partir da
relação com os operários.
E, finalmente, mas não menos importante, a
possibilidade de os formadores desenvolverem, em parceria com os operários, um
modo inovador de gestão dos cursos, que rompesse com os modos tradicionais e
tomasse o trabalho e as decisões coletivas como referência. Ainda que a
organização do trabalho se apresente na forma de uma coordenação
administrativa, coordenação pedagógica, coordenações de cursos, formadores e
coordenadores de comunicação, de tecnologia etc., essa organização não obedece
a uma estrutura de poder e de dominação de uns sobre os outros, produzindo e
mantendo desigualdades entre eles e implicando relações de trabalho favoráveis
a alguns em detrimento de outros. Trata-se, portanto, de uma estrutura
organizacional horizontalizada em que a divisão do trabalho — que define as
atividades dos Formadores, dos Coordenadores dos Formadores, dos Coordenadores
Administrativo e Pedagógico — designa pessoas segundo suas afinidades e saberes
relativos às atividades a serem desenvolvidas.
As decisões fundamentais são tomadas pelo
coletivo e todos compartilham todas as informações. Para cada curso ou
atividade desenvolvida pelo PROGEST, escolhe-se ou alguém se oferece para
coordenar uma dada atividade; todavia, a ação do coordenador é essencialmente a
de viabilizar coletivamente o trabalho e não a de exercer um poder de mando. A
estrutura de coordenação e os coordenadores podem ser mudados a qualquer
momento se assim desejar o coletivo.
O protagonismo da Instituição e do
professor que acompanha os alunos desde a criação dos cursos e é o líder do
PROGEST, diminui e quase desaparece. O protagonismo é do grupo (inclusive
editais, datas, valores e outras decisões são tomadas pelo grupo). Ao longo dos
quase 15 anos de existência do PROGEST, as regras de convivência e os modos de
gestão das atividades foram construídas e reconstruídas permanentemente à luz
das dificuldades, das perdas, dos conflitos, mas também dos sucessos.
O PROGEST insere todos, formadores e
operários, mas também a própria Instituição — num mundo de relações diferentes
do habitual. Para os formadores, as relações extrapolam em muito as demarcadas
pela sala de aula ou pela própria escola; para os operários, da mesma forma,
extrapola os canteiros de obras ou espaços outros de trabalho e emprego; para a
Instituição, extrapola a pedagogia, as regras e as relações de poder internas.
Ao longo dos quase 15 anos, alguns
princípios, frutos das experiências de um trabalho coletivo, consolidaram-se, e
ainda que não se encontrem registrados num regimento interno, estatuto ou coisa
que o valha, eles norteiam as condutas e o trabalho de todos.
3 PRINCÍPIOS
NORTEADORES DAS CONDUTAS E DOS TRABALHOS NO PROGEST
Estes princípios foram construídos a
partir de vivências, de superação de obstáculos, de conflitos e de dificuldades
diversas encontradas ao longo do trabalho, mas também de ações bem sucedidas
conduzidas pelos formadores do PROGEST. Os princípios, na verdade, não são
novos. Eles frequentam os estudos e a bibliografia dedicada à sociologia, à
psicologia e às ciências da educação há muito tempo.
Damo-nos conta que o PROGEST, ao construir
esses princípios, coloca como questão essencial “o quê o trabalhador quer
aprender?” Tomasi e Ferreira (2013), aproximando a sua prática à “formação ao
longo da vida” dos pesquisadores do Conservatoire Nacional des Arts et Métiers
– Cnam, Merle (2006), Meirieu (2005) e Jobert (2006). Esses autores fazem,
inclusive, uma distinção entre “educação ao longo da vida” e “formação ao longo
da vida”. Eles utilizam o segundo termo e reservam o primeiro à atividade na
qual os que são objetos desta educação não escolhem deliberadamente seu objeto
de aprendizagem; no caso, as crianças. Eles estão, ao fazerem a distinção, tomando
seguramente como referência o conceito de educação em Durkheim[10]
e a ele, de alguma forma, se opondo. A pergunta não
se reporta ao que os seus patrões ou o mercado querem que eles aprendam —
referência clássica para a montagem de matrizes curriculares e conteúdos desses
programas — mas o que eles querem aprender.
Muito embora não pareça, a pergunta não é
habitual, pelo menos entre os que oferecem esses programas. Não é difícil
demonstrar que, de modo geral, os trabalhadores, não escolhem o que aprender. O
PROGEST, ao procurar responder esta questão, procura aproximar-se, também, de
Paulo Freire, uma importante referência de educadores brasileiros, que
reconhece na educação uma dimensão política e vê na prática pedagógica uma ação
libertadora comprometida com uma sociedade mais justa e igualitária.
Ainda que o PROGEST seja um projeto de
formação profissional em permanente construção e aberto a outras perspectivas
teóricas, espelhando-se em Paulo Freire — dentre outros — busca reconhecer os
conhecimentos dos operários e, numa prática pedagógica de troca entre os
saberes do canteiro de obra e da escola, fazer retornar tais conhecimentos a
estes mesmos operários, num compromisso com a justiça social. Sem perder de
vista, todavia, que, como no ensina Maggi (2010), para aprender é preciso
desejar aprender. Nesta direção, acrescentaríamos: é preciso respeitar o “tempo”
e o desejo do outro.
3.1
Somos todos formadores.
Como já foi dito anteriormente, o aluno do
CEFET-MG que participa do PROGEST não é um professor, nem um instrutor, mas um
formador, ou seja, aquele que cria as condições para que o processo de
aprendizagem, a transmissão de saberes e a construção de conhecimentos possam
acontecer.
Assim, todos são levados a compartilhar os
seus saberes e a colaborar com o outro na construção do seu conhecimento
(aluno/aluno; aluno/operário; operário/operário). E isto pode acontecer dentro
ou fora da sala de aula. Eu ensino para o outro o que eu sei e aprendo com o
outro o que ele sabe e me ensina. O que eu ensino ou aprendo não está
necessariamente ligado a conteúdos da formação profissional, e pode estar
relacionado a “conteúdos” da vida. Aprendemos uns com os outros, mas
especialmente aprendemos sobre nós mesmos, sobre os outros e sobre o mundo em
que vivemos. Quem somos nós e quem são os outros? E que país ou mundo é este em
que vivemos?
3.2
O outro não é um vazio a ser preenchido.
Os alunos, os operários, as pessoas em
geral não são um vazio a ser preenchido. Eles portam saberes, conhecimentos,
experiências, sentimentos. Eles têm uma história e são portadores de valores.
Eles são singulares. Eles aprendem e também ensinam.
3.3
Como ensinar e como aprender?
Para ensinar ou aprender é preciso se
colocar no lugar do outro, mergulhar na sua cultura, história, valores etc. (o
sentido de alteridade). É preciso aprender a pensar como o outro pensa, mas,
sobretudo, descobrir como eu penso. Não se trata de uma tarefa fácil, porque
não se trata de uma troca realmente entre iguais. A idade, a escolaridade, os
saberes, a origem socioeconômica, a história, a cultura, por exemplo,
distanciam, em alguma medida, formadores de operários. Trata-se de uma troca
tão rica quanto difícil. É preciso interpretar o contexto e, por vezes,
improvisar, fazer uso da intuição, desenvolver o sentido do kairos ou o sentido da oportunidade.
Intervir no “tempo” certo. É preciso fazer uso da linguagem e identificar linguagens
diferentes, construir conceitos com o outro. É preciso saber ouvir o outro,
desenvolver a escuta. É preciso olhar o outro e ser visto por ele. É preciso,
sobretudo, acolher o outro.
3.4
A produção do conhecimento.
A produção do conhecimento é uma ação
íntima de cada indivíduo, mas ela se dá nas trocas com o outro, consigo mesmo
via reflexão, e com o mundo, alicerçada nos saberes, nos conhecimentos e na
história que os interlocutores trazem para as suas relações, e na reflexão.
3.5
A aprendizagem. A aprendizagem tem um sentido.
Ela explica e corrige os operários o que
eles fazem no trabalho e na vida fora do trabalho e o mesmo acontece com os
formadores no que diz respeito ao que estudam em sala de aula. As trocas que
estabelecem os formadores e os operários os levam a descobrir que pensar de
outra forma é possível. A aprendizagem acontece mais facilmente quando a teoria
e a prática se encontram, e isto pode ou deve acontecer nas salas de aula, nos
laboratórios ou em qualquer outro lugar. A aprendizagem acontece quando há
interesse de quem quer aprender.
3.6
A reflexão.
A reflexão sobre o que se ensina e o que
se aprende. A discussão em grandes ou pequenos grupos, a experimentação, a
correção de rumo, a produção de artigos de pesquisa etc.
3.7
O processo dinâmico.
Tudo acontece de uma forma dinâmica, a
partir de necessidades, demandas e projetos. As trocas acontecem entre todos e
todo o tempo. O novo sempre vem; não é necessariamente melhor, mas sempre vem.
3.8
O processo espontâneo.
O grupo se autocorrige (ele se
autorregula) permanentemente e constrói seu próprio rumo, tomando como
referência experiências vividas (boas ou ruins), os acontecimentos no entorno,
expectativas e projetos.
3.9
Autonomia, responsabilidade, iniciativa e respeito mútuo.
Liberdade para tomar a iniciativa e agir
com autonomia sempre em consonância com o grupo, em respeito ao outro e
assumindo responsabilidades.
3.10
A multiplicação.
Cada aluno e cada operário é um
multiplicador. O próprio PROGEST é um multiplicador. Tende-se a multiplicar
saberes e experiências, que podem reforçar ou não o trabalho do grupo.
4 O TRABALHO DO
FORMADOR É, PARA ELE, DESAFIADOR; MAS, TAMBÉM, OPORTUNIDADE DE APRENDIZAGEM, DE
FORMAÇÃO PROFISSIONAL E PESSOAL.
4.1
O desafio dentro da sala de aula.
Em toda sua vida, o formador do PROGEST só
entrou na sala de aula na condição de aluno. Entrar na sala de aula como
formador ou como alguém que deverá conduzir ou pelo menos facilitar os
trabalhos de aprendizagem de operários com grande experiência profissional é
uma tarefa nova e perturbadora, ainda que ele conte com a ajuda de colegas que
lhe passam algumas “dicas”. Perturbador, sobretudo, porque aos olhos dos operários
ele é um professor. Cabe a ele explicar que não é professor e sim um formador,
e o que significa ser um ou outro, desmistificando, assim, um possível
entendimento dos operários de que ele é “o que sabe tudo”.
Como, então, agir? Desafiador, também,
porque se a única referência do processo ensino-aprendizagem que possui é o que
vivenciou na condição de aluno ele é tentado a reproduzi-lo ou replicá-lo como
nos mostra Cruz (2008) em sua pesquisa sobre PROGEST. A ajuda fundamental para
que o formador aja como tal vem dos próprios operários. Muitos são mais velhos,
com idade média em torno de 45 anos e com larga experiência nos trabalhos da
construção, onde começaram a trabalhar ainda crianças, e movidos pelo desejo de
aprender algo que faça parte de seus projetos pessoais eles acabam promovendo o
diálogo em sala de aula. Um diálogo, diríamos, entre iguais porque enquanto uns
detêm saberes que lhes chegaram pela via da academia, os outros detêm saberes
que lhes chegaram pela prática vivida nos canteiros de obras.
Assim, as salas de aula e os próprios
cursos ganham uma dinâmica própria, distante das salas de aula e dos cursos
tradicionais. “As salas de aula do PROGEST, longe de reproduzirem as salas de
aula tradicionais que conhecemos, são o lugar onde os interesses dos
trabalhadores dão forma aos programas de formação profissional. Se, por um
lado, o PROGEST propõe conteúdos e uma dinâmica de aula, por outro lado, os
trabalhadores apontam as mudanças necessárias no curso e o fazem mudar.”
(Souza, et. al, 2010).
Mas como lidar emocionalmente com a
primeira aula? Ou como preparar uma aula e ministra-la para operários de baixa
escolaridade? Como fazê-los acessar saberes, por vezes, complexos da
engenharia? Como conduzir uma aula de modo a não deixar que acontecimentos
possam prejudicar a condução dos trabalhos?
Várias pesquisas já foram feitas sobre a
formação profissional oferecida pelo PROGEST e muito especialmente sobre os
próprios formadores. Uma delas (Tomasi, Siqueira & Franco, 2007)[11],
que contou com a participação de formadores do curso
de Instalações Elétricas Prediais, eles mesmos alunos do curso de Engenharia
Elétrica do CEFET-MG, trata das questões acima, entre outras, a partir do
relatório de três formadores. Segundo os autores, e em conformidade com o depoimento
de um dos formadores:
O Formador procura superar as dificuldades
fazendo uso de habilidades pessoais. Como forma de reduzir ou mesmo eliminar o
nervosismo ele se aproxima dos alunos, assim como muito possivelmente faz ou já
fez com os seus colegas de faculdade, se colocando no mesmo nível deles. Ou
seja, ele abre mão da autoridade que poderia lhe revestir o cargo de Formador
para se tornar um igual. Isso, certamente, tira-lhe das costas o peso da
responsabilidade de quem tudo sabe, ou algo parecido. (Formador 2).
Vejamos o que diz outro formador sobre a
preparação das aulas: A primeira aula é um momento onde o nervosismo será
substituído pela ânsia de transferir o conhecimento. Ou você se apaixona pelo
lecionar ou você se distancia definitivamente de tal.
E, ainda, A
preparação da aula é um grande desafio. Como explicar determinado assunto sem
que a explicação se torne confusão na cabeça do aluno?
O próprio formador responde: É preciso elaborar bem as definições e arranjá-las de forma a não ferir
os embasamentos teóricos da engenharia, mas garantir que o assunto seja discutido
de forma simples e objetiva. (Formador 2)
E nos diz, ainda, sobre as dificuldades
para conduzir as aulas,
Qualquer interrupção pode ser fatal para o desenrolar
do conteúdo, já que rodeado de falta de experiência, pensa-se que o foco deve
ser garantido incondicionalmente. Surgem, então, as dúvidas durante as aulas, e
o cronograma definido previamente acaba de ser interrompido. O que fazer?
Ele tenta uma saída, possivelmente
reproduzindo práticas pedagógicas de seus professores:
Durante algum tempo pedi para que as dúvidas fossem
guardadas para o fim da aula, assim o andamento da explicação nunca ficaria
comprometido. A preparação do conteúdo poderia ser feita sem se ter que supor
possíveis embaraços durante as aulas como, por exemplo, perguntas fora do
conteúdo etc.
Como a tentativa não funcionou, ele
procura explicar o porquê, descobre outra forma de conduzir as aulas e conclui:
Percebi que tal procedimento de regência
das aulas não era a melhor maneira de ‘passar’ o conteúdo ou solucionar as
dúvidas e questões propostas pelos alunos. Com a experiência pude perceber que
dúvida que surge agora deve ser discutida agora, mesmo porque pode ser a dúvida
de outras pessoas mais tímidas ou menos concentradas na aula. O público alvo do
PROGEST é adulto, com menos esclarecimento acadêmico e por tal motivo é de suma
importância estar sensível a qualquer demonstração de não entendimento, já que
dadas as circunstâncias, o professor passa a fazer parte mais que integrante no
esclarecimento das dúvidas. Os alunos têm pouco acesso à bibliografia
especializada e dispõem de pouco tempo para as pesquisas, uma vez que possuem
trabalho secular, família e outros compromissos rotineiros de qualquer líder de
família.
Ele descobre, ainda, que para bem conduzir
as aulas e levar os alunos ao melhor aproveitamento possível, é preciso fazer
mais:
O professor precisa, ele mesmo, inserir as
dúvidas e levar o público à reflexão, e sempre levar as aulas assim, para que o
assunto seja por completo, ou na grande parte, compreendido pelos ouvintes.
Deixar que as aulas sejam levadas
principalmente pelas dúvidas que surgem me fez entender que a preparação é,
sim, parte importante do lecionar, mas a compreensão do momento da aula e a
sensibilidade para interpretar os sinais dos alunos quanto à compreensão ou não
do assunto é o principal regimento de aulas a se utilizar. É preciso, por
exemplo, avaliar a situação, a linguagem utilizada e os meios de que faz uso. É
preciso, inclusive ouvir os alunos sobre a melhor linguagem a ser utilizada.
Observando os alunos em sala de aula,
outro Formador descobre que a heterogeneidade da turma, no que diz respeito aos
conhecimentos prévios de informática e, portanto, as dificuldades dos que não
possuíam esses conhecimentos em acompanhar a turma, se mostram claramente em
sala de aula, na constituição e separação de grupos de alunos com pouca ou
nenhuma familiaridade com o computador.
Os alunos que possuíam facilidade ficavam
de um lado da sala e os que possuíam dificuldade, do outro. No momento minhas
aulas estavam sendo prejudicadas por esses dois segmentos que acabavam se
distanciando cada vez mais. Logo, precisava desenvolver um método que sanasse
esse problema de dificuldade de uns e dispersão de outros. (Formador 3)
Segundo os pesquisadores, o Formador 3,
fazendo uso da experiência de outro colega do PROGEST, reconstrói os grupos de
forma a colocar em cada um deles alunos com níveis diferentes de familiaridade
com o computador.
No segundo dia eu bolei um método para que
minhas aulas se desenvolvessem. Eu pedi que eles se auto classificassem em
nível de facilidade com o computador em 1, 2 e 3, respectivamente do menor para
o maior. Após isto, pedi para que eles se dispusessem de maneira que os alunos
classificados como 1 não se sentassem lado a lado e que os alunos classificados
como 3 e 2 ajudassem os demais. Sendo assim, percebi grande evolução na
interação entre eles; ainda assim me perguntavam algo, mas mesmo assim minhas
aulas rendiam muito mais. Os alunos que tinham dificuldade sanavam suas dúvidas
mais rapidamente e os alunos que não tinham eram obrigados a acompanhar a aula
para ajudar os demais.
E a
pesquisa conclui:
Os
Formadores jamais viveram qualquer experiência de docência, exceto na condição
de alunos. Assim, para superar as dificuldades que encontram em suas
atividades, eles se apoiam nos colegas ou em si mesmos (experiências de vida,
modos de ser, valores etc.). Se é possível que tenham como referências em suas
condutas em sala de aula, os seus próprios professores ou seus colegas, o que
parece marcante nas tentativas de superação das dificuldades são as
alternativas produzidas por eles mesmos. Suas condutas são marcadas pelo uso de
saberes que vão além dos saberes formais associados aos conteúdos a serem
ensinados e se mostram mais próximas do saber ser, ou seja, habilidades
relacionadas às dimensões humanas e sociais. Em outras palavras, o que parece
assegurar o sucesso dos Formadores em sala de aula não são os conteúdos, mas as
habilidades apresentadas por eles, por vezes ausentes em professores com muitos
anos de magistério.
Se os Formadores levam para a sala de aula
a sua experiência como alunos do curso de engenharia e, por vezes, se veem
tentados a reproduzi-la nos cursos de capacitação do PROGEST ou replicá-la
(Tomasi, Góis & Cruz, 2007), eles são levados, também, pelas circunstâncias
a dialogar com os trabalhadores sobre suas demandas e a elas atender, quando
possível. Mas, mais do que isto, as salas de aula do PROGEST são, também, o lugar
em que os interesses dos Formadores e operários se fazem sentir. Eles levam
para a sala de aula suas expectativas, apreensões e também o desejo de aprender
alguma coisa, que faça parte de seus projetos pessoais. Dito de outra forma, os
Formadores, ainda que num primeiro momento não percebam, enquanto formam os
trabalhadores, eles são também formados. Eles aprendem a organizar ideias,
conteúdos e expô-los, falar em público, antecipar-se aos problemas, resolver
problemas, criar, ouvir o outro, responsabilizar-se, relacionar-se etc.
4.2
O desafio fora da sala de aula.
Acostumados a seguir regras, na escola ou
na vida fora dela, ou seja, a viver em sociedade com suas leis e regras, no
PROGEST, os formadores são levados a construir, eles mesmos, algumas regras e a
cumpri-las. Regras que tratam de suas vidas no trabalho e ao lado de iguais.
Regras de convivência e de gestão do trabalho. Como viver juntos, construir
novas regras e gerir o trabalho?
É tentador para os formadores reproduzir a
escola que conhecem, com todo seu modo de gestão, normas e disciplinas. Eles
não viveram outra experiência diferente da vivida como alunos, filhos, irmãos
etc. É tudo o que conhecem. Reproduzir as hierarquias, as relações de sala de
aula professor/aluno, a prática pedagógica, a disciplina etc. Ao integrarem a
equipe de formadores, os alunos recebem, de uma forma não sistemática, as
orientações básicas de como funcionam os cursos e o próprio PROGEST. Mas é na
situação da sala de aula — com os operários e fora dela com os colegas, também
formadores, a partir dos problemas concretos que surgem cotidianamente, seja em
reuniões, seja individualmente, quase que na forma de um aconselhamento ou uma
troca de experiências — que eles descobrem que há um modo todo próprio de
convivência expresso em regras não escritas, mas respeitadas por todos. Descobrem
que um outro modo de conviver, de aprender e de ensinar é possível, que uma
outra prática pedagógica é possível: não se exclui ninguém, seja formador, seja
operário; o diálogo com o outro ou com o grupo é o melhor caminho para se
resolver problemas; a escuta é fundamental, seja escutar o colega ou o
operário; colocar-se no lugar do outro; antecipar-se aos problemas; assumir
responsabilidades; ter iniciativas etc.
Todos podem propor mudanças no
funcionamento do PROGEST e se elas forem discutidas e aceitas pelo grupo elas
passam a vigorar, sem que para isto haja necessidade de qualquer registro. Mas
nada impede que se passe a fazer registros num dado momento. Eles descobrem que
este outro modo de viver, esta outra prática pedagógica foi construída num processo
de autogestão, que reafirmam cotidianamente como a referência mais precisa dos
trabalhos que eles realizam, não tão evidente na sala de aula com os operários,
mas visivelmente fora dela, na condução do PROGEST.
Ao acompanharmos mais de perto as ações dos
formadores, vemos o quanto elas nos remetem aos trabalhos do sociólogo francês Lapassade[12],
sobretudo quando se trata das relações do PROGEST com
o CEFET-MG.
4.3
O desafio da relação com o CEFET-MG: uma relação quase sempre conflituosa
Pesquisas em cursos no PROGEST nos ajudam
a entender que, se a iniciativa de criar os cursos abre um leque de
oportunidades para os alunos, como acima ressaltado, ela abre, também, um
confronto direto com a Instituição representada pela sua direção e outros
órgãos e com parte de seu corpo docente. O confronto, todavia, por mais difícil
que seja de ser suportado, contribui também para a formação dos alunos na
medida em que exige deles uma melhor compreensão da Instituição e das relações
de poder nas quais se encontram inseridos, além de contribuir para o
desenvolvimento de habilidades para a superação das dificuldades.
O PROGEST, que com os seus cursos já
formou mais de 1500 operários, é uma escola dentro de outra escola. E, mais, é
uma escola que funciona institucionalmente independente da outra escola, ainda
que esteja ligada a um grupo de pesquisa da Instituição devidamente reconhecido
pelo CNPq e faça uso das instalações da Instituição. Uma escola que, ao fazer
uso da autogestão, se opõe politicamente à outra, que é hierarquizada em níveis
bem distintos e relações de poder igualmente bem demarcadas.
O PROGEST não é um projeto pedagógico de
formação de adultos da escola, mas um projeto que ocupou a escola. Estamos, de
fato, no território bem estabelecido por George LAPASSADE em suas reflexões
teóricas sobre a noção de autogestão pedagógica e suas implicações
institucionais e políticas, e em suas experiências na educação, inclusive com
passagem importante em instituições de ensino superior de Belo Horizonte na
década de 1970[13].
Mais radical, ele está interessado num sistema de
educação em que a intervenção do professor aconteça no sentido de renunciar à
sua condição de transmissor de mensagens (isso não acontece ainda no PROGEST),
e no de que a formação aconteça ao se permitir aos alunos que decidam, eles
próprios, sobre os métodos e os programas de aprendizagem, ou seja, como eles
querem aprender (isso acontece em larga medida).
Esta é, resumidamente, a autogestão
pedagógica de Lapassade. Mas ela é mais do que isso. O sistema proposto por ele
tem uma intencionalidade muito precisa. Ele está interessado é em construir “contra
instituições”, e isto se daria na permanente contestação da instituição,
leia-se do instituído, ou do sistema que se coloca por de trás dela, no nosso
caso, da escola. As “contra instituições” são os elementos analisadores que nos
permitem desnudar os sistemas escondidos.
Vejamos, então, como isso funciona: o fato
de os alunos do CEFET-MG ministrarem aula não agrada a alguns professores da
Instituição: “Aluno é aluno e professor é professor. Aluno não pode dar aula”
(Professora do ensino superior, CEFET-MG, campus II). Dito de outra forma, os
alunos não podem dar aula, porque não portam saberes e conhecimentos
necessários e suficientes para tal. Logo, deduz-se, estariam usurpando a função
de professor. Não apenas isto, mas a sua autoridade, o seu poder e lugar na
Instituição. Vejamos o que os formadores constatam ao se defrontarem com este
desagrado. O professor possui experiências, que variam de um para outro
professor, e se distingue de seus alunos pela posse do diploma de engenheiro,
ou de outra profissão, e pelo fato de ter sido aprovado num concurso para
professor — concurso que a rigor não o torna professor. Os do ensino superior e
os das disciplinas técnicas do ensino médio/técnico não têm a licenciatura,
curso que os credenciaria como tais. E mais, questionados, muitos deles não se
identificam profissionalmente como professores, mas como engenheiros ou outra
profissão. Logo, eles não são professores, mas engenheiros ou outros
profissionais que ministram aula, e isto não é mesma coisa que ser professor.
Posto o dedo na ferida, os formadores
tratam de consolidar sua posição. Eles se apresentam para a Instituição como
formadores e não como professores, o que ajuda a reduzir a resistência dos
professores ainda contrariados. E fazem mais. Eles procuram aproximar-se de
alguns professores solicitando ajuda sobre alguns pontos de conteúdos que
ministram para os operários.
Tem contribuído muito para a redução da
resistência o fato de os cursos do PROGEST serem cada vez mais reconhecidos
como uma atividade social importante, o que amplia a visibilidade da
Instituição e contribui fortemente para uma melhor avaliação da Instituição e
seus cursos junto ao Ministério da Educação — MEC.
A relação com a Instituição, representada
pela Diretoria de Extensão, tem sido mais difícil. Muito embora o PROGEST tenha
sido credenciado junto ao CNPq pela Diretoria de Pesquisa e Pós Graduação da
Instituição como um grupo de pesquisa em 2008 e desenvolva pesquisas,
dissertações e teses a partir dos cursos oferecidos sobre a formação e a
qualificação profissional dos operários e formadores que deles participam, a
Diretoria de Extensão recusa-se a reconhecê-lo como tal e insiste que se trata
de uma atividade de extensão.
A recusa do PROGEST em sair da pesquisa e
da pós-graduação para alocar-se na extensão tem gerado inúmeros
constrangimentos, tais como ameaças de fechamento do grupo, expropriação de
seus equipamentos e impedimento de utilização das instalações do campus II
(onde ele se encontra instalado), proibição de cobrança de qualquer taxa dos
operários, ainda que seja para a compra de camisas, carteirinha de estudantes,
equipamentos e material necessários às aulas etc. Proibição de certificação dos
operários, que passou a ser feita pelo Diretório Central dos Estudantes — DCE,
num mecanismo para contornar a proibição. Outro mecanismo para contornar a
proibição de acessar recursos dos operários via taxas de carteirinhas, foi à venda
de balas e doces aos sábados para os alunos do CEFET-MG e operários. Essa única
fonte de renda dos Formadores para assegurar o mínimo em suas aulas foi
recentemente proibida. A cada interdição os formadores encontram mecanismos
para contorná-la, num permanente malabarismo político criativo.
Se por um lado são feitas ameaças e
proibições, por outro o PROGEST continua utilizando as salas de aula e um
pequeno escritório no campus II, assim como o telefone, energia elétrica etc.,
e isto, em grande medida, graças à ajuda de alguns técnicos administrativos e
professores, que se identificam com o trabalho do PROGEST.
Como o PROGEST foi aos poucos e ao longo
de sua existência adquirindo alguns equipamentos - como multimídia, por exemplo
-, esses equipamentos são regularmente emprestados durante a semana a um dos
Departamentos Acadêmicos do campus II. Os Departamentos reconhecem as
atividades dos Formadores como atividades complementares, como prevê a
legislação, e fazem uso das atividades do PROGEST em seus relatórios junto ao
MEC.
Os Formadores percebem muito claramente
que o PROGEST, sem perder de vista a autogestão que o conduz, participa da vida
da Instituição, é reconhecido pelo conjunto dos professores e alunos do
CEFET-MG e ganha legitimidade. O que explicaria, então, tanto constrangimento
por parte da Instituição? Se ela tem poder para fechá-lo, como de fato tem, por
que não o fecha? É muito possível que não seja esta a sua intenção, porque se
de um lado há um custo político e social a ser assumido com o encerramento de
uma atividade que já formou mais de 1500 operários e envolve permanentemente
cerca de 90 alunos do CEFETMG, por outro é uma atividade de baixíssimo custo
para a ela porque as atividades são desenvolvidas por voluntários movidos tão
somente pelo desejo de aprender, de intervir socialmente, de pesquisar e
produzir conhecimento.
Se há, então, um reconhecimento e
legitimidade do PROGEST como tal, por que insistem em alocá-lo na Diretoria de
Extensão, retirando-o da Diretoria de pesquisa e Pós-graduação? A resposta pode
estar na possibilidade de maior controle do grupo neste último órgão do que no
primeiro. Enquanto na Diretoria de Pesquisa e Pós-graduação as práticas
pedagógicas, as pedagogias alternativas e a autogestão pedagógica são apenas
objetos de estudo - o que justificaria plenamente a existência dos cursos no
interior do grupo de pesquisa -, para a Diretoria de Extensão eles não são
objetos de estudo, mas atividades que rivalizam com as atividades sob o seu
auspício e com a própria Instituição no seu modo de gestão, muito distante e
mesmo em oposição à autogestão praticada pelos formadores do PROGEST.
Diferentes entendimentos de educação e de
escola estão em questão. Em outras palavras, pedagogias alternativas são
possíveis e mesmo bem aceitas pela Instituição, mas desde que devidamente
enquadradas por ela. Neste caso, só nos parece possível uma pedagogia
alternativa na forma de uma “ocupação”.
5 CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Para além dos embates postos pelos
diferentes conceitos de educação e de função da escola, sejam eles de cunho tecnicista,
voltados para os mais pobres e para atender o mercado, sejam eles de cunho
propedêutico e voltados para a elite e seus interesses econômicos e políticos,
destaca-se a importância de se discutir as práticas pedagógicas e a
possibilidade de um projeto de uma pedagogia alternativa de formação de adultos
no interior de uma escola de educação tecnológica. A efetivação do projeto e a
descoberta pelos Formadores da possibilidade de outro modo de ensinar, de
aprender e de estar com o outro, de um novo modo de trabalhar em grupo,
valorizando os indivíduos, a justiça social e as relações democráticas,
representa um grande ganho pessoal e profissional para eles. Para os operários,
da mesma forma, voltar à escola e, muito especialmente, ter um lugar e um reconhecimento
num espaço universitário, onde ele descobre o porquê teórico e científico do
que faz nos canteiros de obras, representa uma conquista pessoal e
profissional, mas, sobretudo, ele passa a se sentir, de fato, inserido
socialmente. Mas um projeto alternativo de formação de adultos não se faz
tranquilamente e, muito possivelmente, isto se deva à sua condição de
alternativo.
As experiências do PROGEST nos levam a
acreditar que quanto mais alternativo for o projeto, ou seja, quanto mais
compromisso ele tiver com uma ideia própria de educação e menos com a
Instituição que o abriga, maiores serão os conflitos. Os conflitos, todavia,
estão longe de serem ruins. Por um lado, eles contribuem com a formação
profissional e pessoal dos Formadores, que vivem mais de perto o conflito e
aprendem a lidar com ele. Por outro lado, tais conflitos desvelam, explicitam e
expõem os valores e o entendimento de educação e de escola da Instituição.
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Para citar o artigo digite
[1]
OCDE (2017), Education at a Glance 2017: OECD Indicators, OECD Publishing,
Paris. http://dx.doi.org/10.1787/eag-2017-en
[2]
PESCE, S; AUDEBRAND, F. Justice
sociale, action politique et pédagogie, in CASANOVA, R.; PESCE, S. Pédagogie alternative em formation
d’adultes. Éducation pour tous et justice sociale. Issy-les-Molineaux: ed.
ESF, 2010. “Dans son acception originelle, il s‘agit de reconnaître que
certains groupes de la population doivent être soutenus, aidés de façon
particulière pour remédier à des difficultés structurelles qu‘ils rencontrent
dans l‘exercice de certains droits.” p. 40.
[3]
A Rede Federal está
vivenciando a maior expansão de sua história. De 1909 a 2002, foram construídas
140 escolas técnicas no país. Entre 2003 e 2016, o Ministério da Educação
concretizou a construção de mais de 500 novas unidades referentes ao plano de
expansão da educação profissional, totalizando 644 campi em
funcionamento.”
[4]
Termo usualmente utilizado pela
literatura para designar os jovens pobres e que pode ser encontrado, entre
outros, em AZEVEDO L. A.; COAN M. O
ensino profissional no Brasil: atender “os pobres e desvalidos da sorte” e
incluí-los na sociedade de classes — uma ideologia que perpassa os séculos XX E
XXI. Trabalho Necessário Issn: 1808 – 799X ano 11, nº 16, 2013.
[5]
O Centro Federal de Educação
Tecnológica de Minas Gerais tem início neste período e evolui da seguinte
forma: Escola de Aprendizes Artífices (1909–1943), Escola Técnica de Belo
Horizonte (1943–1965), Escola Técnica Federal de Minas Gerais (1965–1978) e
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) a partir de
1978. O CEFET-MG e o CEFET-RJ não aderiram à mudança ocorrida no sistema de
formação profissional tecnológica que criaram os Institutos Federais,
denominação que passaram a portar os demais CEFETs brasileiros desde 2008.
[6] Para ver mais convém ler Zarifian, Ph. Le travail et l’événement. Paris:
L‘Harmattan. 1995.
[7]
Na atualidade restam apenas o
CEFET-MG e o CEFET-RJ. Os demais foram transformados em 38 Institutos Federais.
Todos eles, CEFETs e Institutos, todavia, fazem parte da mesma rede de ensino,
qual seja a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica.
[8]
O leitor precisa estar atento ao
fato da Formação em Alternância no Brasil e na Europa não serem a mesma coisa,
ainda que este método de formação profissional tenha chegado ao Brasil pelas
mãos de europeus, sobretudo franceses, italianos e alemães. Enquanto na Europa
a relação da escola se dá com a indústria, pelo menos na sua grande maioria, no
Brasil ela acontece essencialmente no meio rural e, sobretudo, com as famílias
rurais.
[9]
A denominação PROGEST foi, entre
outras, escolhida pelos alunos ainda em 2003, por ocasião da constituição do
primeiro grupo de trabalho que criou o curso de Gestão de Obras.
[10]
Para Durkheim “A educação é a ação
exercida pelas gerações adultas sobre aquelas que ainda não estão maturas para
a vida social. Ela tem como objetivo suscitar e desenvolver na criança um certo
número de estados físicos, intelectuais e morais exigidos tanto pelo conjunto
da sociedade política quanto pelo meio específico ao qual ela está destinada em
particular.” (DURKHEIM, p. 53-54, 2013).
[11] TOMASI,A.P.N.; SIQUEIRA,F.C.;
FRANCO,P.R.M. FERREIRA,P.A.G. Alunos que ensinam superam dificuldades: o caso
dos alunos de engenharia do CEFET-MG, XXXVIII
Congresso de Educação em Engenharia, 12-15 setembro, Fortaleza - Ce. 103
2).
[12]
LAPASSADE, G. — L'autogestion pédagogique. Recherches institutionnelles 2. — Paris:
Gauthier-Villars, 1971. (Hommes et Organisations). 107
[13]
Georges LAPASSADE esteve em Belo
Horizonte no início dos anos 1970 e, acompanhado de professores da disciplina
Psicologia social do curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da UFMG, dentre eles o prof. Romualdo Dâmaso, protagonizou intervenção
no campo da autogestão pedagógica na recém-criada Faculdade de Ciência Humanas
da Fundação Universidade Minas Gerais – FUMG, Instituição que mais tarde foi
denominada Fundação Mineira de Educação e Cultura – FUMEC. Os registros dessa
intervenção são desconhecidos pelo autor.
Um texto lúcido e atual.
ResponderExcluirDeveria ser leitura obrigatória para todos aqueles quee se propõem a educar e ensinar.
Parabéns por sua trajetória profissional!
Muito obrigado e grande abraço.
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