sábado, 3 de outubro de 2015

O canteiro de obras é escola? Formação e qualificação profissional na Construção Civil.

TEORIA E SOCIEDADE nº 17.2 - julho-dezembro de 2009. www.fafich.ufmg.br/.../edicoes/

Luciano Rodrigues Costa *
Antônio de Pádua Nunes Tomasi**

RESUMO
Tomando como ponto de partida as queixas de dirigentes da Construção Civil, subsetor Edificações habitacionais, segundo as quais, haveria no Brasil, uma grande falta de mão-de-obra qualificada para os principais ofícios do setor, este artigo tem como objetivo analisar o processo de aprendizagem dos ofícios e as interações e negociações envolvidas no reconhecimento e classificação dos trabalhadores. O cotidiano de dois canteiros de obras da Construção Civil, localizados na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e os depoimentos de seus trabalhadores, indicam que, não obstante as empresas do setor adotem de forma acelerada os programas de qualidade e mesmo sistemas de produção sofisticados, a exemplo da manufatura, diferente do que é apontado como desejável por esses mesmos modelos, a sua mão-de-obra, permanece desestabilizada. A aprendizagem dos ofícios resta basicamente na situação de trabalho e dependente de redes sociais de amizades e familiares, assim como a classificação do trabalhador. Se, o setor se queixa de “crise” de qualificação não há como não se registrar que este mesmo setor, ao manter desestabilizada a sua mão-de-obra, como um modo próprio de geri-la, impõe dificuldades aos trabalhadores para se formarem e se qualificarem, inclusive nos seus próprios canteiros de obras.

Palavras chave: Trabalho, Qualificação, Processo de aprendizagem, Classificação, Construção Civil.

“Tem trinta anos que eu estou em obra e tem trinta anos que eu escuto falar que não tem gente boa para fazer os serviços, isso não vem de agora; não é por causa desse crescimento que tá tendo não; agora, pode até estar mais difícil de encontrar, mas também, quando chega no início de ano, tem muita gente aí procurando emprego, porque as empresa demitem para não completar um ano e ter que fazer acerto. Eu não acho que falta profissional bom aqui em Belo Horizonte não, têm empresas que são espertas, elas seguram os caras bons, paga bem, dá trabalho a metro, dá incentivo, as que não fazem isso ficam aí falando que não tem profissional bom, mas elas não seguram os cara, uai!”( Navi. Mestre-de-obras canteiro 1)

A falta de mão-de-obra qualificada é uma queixa freqüente na Construção Civil. A queixa, que é essencialmente patronal, não é recente[1]. Para os dirigentes do setor o maior problema não é propriamente a ausência de trabalhadores dispostos a ingressar nos trabalho de canteiros, muito embora o recente “boon” do setor tenha tornado escassa a mão-de-obra, mas a ausência de trabalhadores qualificados. A Edificações, por exemplo, um dos subsetores da Construção Civil, se recente enormemente da má qualidade dos serviços realizados por trabalhadores de Ofício (pedreiros, carpinteiros, armadores etc.), cuja qualificação deixa a desejar. O retrabalho, advindo da insuficiente qualificação do trabalhador, é apenas um dos problemas que os dirigentes, em especial os desse subsetor, constrangidos por prazos, custos, qualidade etc., enfrentam cotidianamente.

Aparentemente, a escassez da mão-de-obra qualificada na Construção Civil, mais sentida na atualidade, estaria relacionada a alguns fatores tais como, a redução das atividades da construção que se estendeu ao longo de todo o período de recessão econômica brasileira nos anos 1980 até final dos anos 1990 (altos índices inflacionários, fim do Banco Nacional de Habitação - BNH, redução de crédito imobiliário etc.), implicando menor demanda de trabalhadores, pelo setor, e, consequentemente, menor oportunidade de formação e qualificação profissional desses mesmos trabalhadores; surgimento e desenvolvimento de outros setores produtivos mais atraentes para a mão-de-obra, tais como os ligados à informática oferecendo melhor remuneração, trabalhos mais seguros e menos pesados etc.; redução da mão-de-obra migrante rural, tradicional fornecedora de trabalhador para a Construção Civil, ou deslocamento dessa mão-de-obra para outros setores, como, por exemplo, o de serviços, etc.

 É possível, ainda, que, a escassez atual da mão-de-obra não seja igualmente verificada no conjunto das empresas da Construção. No bojo do crescimento econômico atual, estaria havendo, como apontam alguns empresários do setor, uma mobilidade dessa mão-de-obra em direção às grandes empresas da Construção. Mais atraentes aos olhos do trabalhador (salário, condições de trabalho etc.), as grandes empresas ao absorverem essa mão-de-obra qualificada reduziriam a sua oferta no mercado de trabalho.

De qualquer forma, não é difícil constatar que os trabalhos da Construção Civil não mais despertam o interesse dos jovens, fato, inclusive, já amplamente registrado pela literatura internacional[2]. Esse interesse não é observado, nem mesmo na maioria dos que entram para o canteiro de obras na condição de ajudantes e de serventes e que poderiam depois de alguns anos tornarem-se oficiais (carpinteiros, pedreiros etc.). O caráter estigmatizado dos ofícios, os baixos salários, a rudeza dos serviços e o enorme desgaste físico, exigido pelos trabalhos, fazem com que haja uma desmotivação, especialmente por parte dos jovens, em procurar, no setor, uma profissão. Para os que realmente pretendem aprender um ofício, o caminho é longo e incerto. As reduzidas iniciativas de formação sistemática de trabalhadores para o setor, seja por parte do Estado, seja por parte do patronato, fazem da aprendizagem no próprio canteiro ainda a principal alternativa. Sendo a formação profissional responsabilidade do próprio trabalhador, para alcançá-la ele se torna depende de uma série de contingências e de circunstâncias, como, por exemplo, pertencer a uma determinada rede social, pois isso lhe permitirá acessar os conhecimentos necessários para se conseguir a classificar-se como oficial. 

Registre-se, também, que o setor jamais se preocupou em estabilizar a sua mão-de-obra. As baixas remunerações praticadas pelos empresários, bem como a ausência de investimentos na formação podem ter contribuído, fortemente, para afastar muitos trabalhadores dispostos a se qualificarem nos ofícios da Construção e nela permanecerem. É sabido que a formação dos trabalhadores da Construção Civil sempre se deu no próprio canteiro de obras, ou seja, na situação de trabalho, à revelia dos empresários e mesmo do coletivo de trabalho. Não obstante a ausência de uma estrutura formalizada de transmissão de saberes e o não compromisso dos empresários em formar e qualificar os trabalhadores nos ofícios da Construção, o canteiro de obra é considerado um espaço real de aprendizagem. A formação ocorre durante a execução das obras e no interior das relações de trabalho, quando trabalhadores sem qualificação profissional (serventes e ajudantes) “aprendem” com os qualificados (oficiais, encarregados, mestre-de-obras). Tal fato faz com que alguns autores denominem a Construção, de “setor escola”[3].

Escola no sentido de que um saber, no caso um saber-fazer, é construído num dado espaço e condições ou, ainda, no sentido de que após um período no canteiro, a exemplo do que ocorre na escola, o trabalhador pode qualificar-se em um dos ofícios do setor. Entretanto a pedagogia do canteiro de obras pouco lembra a pedagogia da escola. Enquanto no canteiro de obras o acesso aos conhecimentos acompanha o ritmo das obras, a sequência de operações, independentemente da complexidade do conteúdo da tarefa a ser executada ou, ainda, do tempo definido pelos processos construtivos, na escola o conhecimento é organizado segundo uma lógica do mais simples para o mais complexo, classificados e separados segundo seus conteúdos e compartimentados em espaços de tempo pedagogicamente definidos como mínimos necessários para que ocorra a aprendizagem. A ordem pedagógica da escola contrasta com a “desordem” pedagógica do canteiro.

O canteiro de obras, portanto, não é escola, lugar onde conhecimentos, princípios e valores sociais 
são veiculados sob o controle do Estado, atendendo a demandas, senão da sociedade, do mercado de trabalho, que define conteúdos a serem aprendidos por passivos cidadãos. Mas é um espaço onde conhecimentos são construídos, qualificações são reconhecidas e valores são veiculados a partir das relações de trabalho estabelecidas na situação concreta de trabalho. E, mais, diferente da escola, propriamente dita, no canteiro de obras o trabalhador é protagonista de sua própria formação e qualificação profissional.

Um olhar mais atento ao que se convencionou chamar de “setor escola”, entretanto, nos dá a medida da precariedade e da contingência do seu processo de formação e qualificação profissional, dependente de vínculos com familiares ou com profissionais mais antigos, numa relação marcada por práticas paternalistas e descontínuas, viabilizadas pelas formas clandestinas dos contratos e, também, por humilhações constantes, às quais os trabalhadores são submetidos. Os contratos clandestinos, quase sempre de curta duração, representam, para os trabalhadores migrantes, uma oportunidade de obter recursos complementares aos rendimentos familiares, mesmo que em caráter transitório.
O alto índice de rotatividade da mão-de-obra da Construção se apresenta como um dos condicionantes que ampliam as dificuldades no aprendizado dos ofícios. Ao permanecer na empresa por um curto período de tempo, interrompe-se, por vezes, o processo de formação do trabalhador, na medida em que ele deixa, por exemplo, de acompanhar os desdobramentos de um dado processo de trabalho. A migração de trabalhadores de uma empresa para outra se dá, muitas vezes, motivada pelo desinteresse da empresa em manter o trabalhador (fim de contratos etc.), mas também pelo interesse do próprio trabalhador em buscar melhores salários ou condições de trabalho. Assim, esses mesmos índices de rotatividade contribuem para desestimular os empresários do setor a não investir na sua mão-de-obra, o que, para eles, significa investir num trabalhador que, depois de formado e qualificado, será contratado pelo concorrente. E outras palavras, a exteriorização da mão-de-obra, modo tradicional de gestão da força de trabalho da Construção Civil (da construção de monumentos e catedrais de antigas civilizações até a de sofisticadas obras de engenharia dos dias atuais), dificulta muito a formação e a qualificação do trabalhador.

Não obstante os muitos obstáculos acima relacionados, a experiência adquirida ao longo do tempo, acompanhando e mesmo interferindo no processo de trabalho, permitiu o trabalhador ascender na escala ocupacional da empresa, o que pode ser constatado na sua classificação em “carteira” como Oficial.

Entretanto, dadas as importantes transformações ocorridas no setor nas últimas décadas, inclusive no Brasil, e a quase obrigatória adoção nos trabalhos de canteiros, por parte dos empresários brasileiros do setor do Programa Brasileiro da Qualidade e Produtividade do Habitat – PBQP-h, torna-se mais difícil o trabalhador permanecer ou mesmo ascender na escala ocupacional da empresa sem inserir-se em um contexto formal de aprendizagem.

Atualmente, a inserção de jovens no canteiro de obras, com maior nível de escolaridade e mais atendo às oportunidades e às exigências do mundo do trabalho não é de todo evidente. O fato da Construção ser marcada por baixo nível de escolaridade dos seus operários, pela precariedade dos trabalhos, consolidaram-se representações socialmente estigmatizadas dessas ocupações, que afastam os jovens dos trabalhos de canteiros. Eles sabem que podem encontrar, em outros setores produtivos, ocupações menos pesadas, arriscadas e mais valorizadas socialmente.

Muito embora não seja percebido por esses jovens e muito menos pelo conjunto da sociedade, a rudeza dos trabalhos realizados pelos “peões”, que simbolizam, ainda hoje, o serviço “desqualificado” e “atrasado”, esconde, na verdade, uma gama de tarefas complexas, tais como a utilização de determinados equipamentos de medição, de cálculos, além dos procedimentos que exigem longa experiência do trabalhador em identificar pequenas irregularidades, invisíveis aos olhos dos inexperientes. O canteiro de obra é, na verdade, um ambiente que, apesar de ainda preservar trabalhos simples, possui também trabalhos altamente complexos e exigentes do ponto de vista da qualificação do trabalhador e que se encontram sob a responsabilidade de profissionais de ofício experientes.

Só muito recentemente, e ainda de forma incipiente, a Construção tem se preocupado com a formação dos trabalhadores. Ainda são raras as empresas que possuem um treinamento formalizado e quando isto existe, está direcionado a um pequeno contingente de trabalhadores, quase sempre visando algumas especializações e não, de fato, uma formação profissional do seu coletivo de trabalho. Isso ocorre apesar de os empresários constatarem a importância da formação para a melhoria da produtividade.

A baixa escolaridade dos trabalhadores absorvidos pela indústria da Construção Civil, muitos, ainda, migrantes da zona rural, faz com que a formação e a qualificação profissional desses trabalhadores assumam características bastante complexas. A presença de tais trabalhadores, somada à descontinuidade da execução das obras e à não fixação do operário nas empresas, contribui, entre outros fatores, para que a formação profissional ocorra de maneira informal.

Registrem-se, todavia, iniciativas atuais do Sindicado da Indústria da Construção (SINDUSCON) e de instituições privadas e públicas que oferecem cursos para os trabalhadores da Construção Civil. Esse esforço de formação da mão-de-obra ocorre de forma complementar à tradicional aprendizagem que se dá no canteiro de obras. Nos cursos são enfatizados diferentes saberes, tais como os relacionados às novas técnicas construtivas, à utilização de novos produtos etc., mas, também, saberes relacionados à racionalização dos trabalhos, e mesmo os chamados saberes sociais (relacionamento com o cliente, engajamento pessoal nos trabalhos etc.). De modo geral essa formação tem como referência as exigências postas ao mundo do trabalho pelos chamados novos modelos organizacionais e pelos programas de qualidade. Algumas empresas de grande porte, assim como os Sindicatos dos Trabalhadores da Construção Civil, ainda que timidamente, têm promovido cursos que atendam essas necessidades dos trabalhos de canteiro.

O acesso a esses saberes, todavia, exige do trabalhador conhecimentos mínimos, normalmente construídos na escola fundamental. Ler e interpretar textos simples ou, ainda, dominar as quatro operações são fundamentais para que ele compreenda, ainda que superficialmente, os princípios desses novos modelos organizacionais, mas também para que ele possa avançar em cálculos e medidas, que embora simples são importantes no cotidiano do canteiro de obras (área, volume, ângulos etc.).

Este artigo tem como objetivo discutir, a partir do cotidiano dos canteiros de obras, o processo de aprendizagem dos ofícios realizada no canteiro de obras, o reconhecimento e a promoção do trabalhador dentro da estrutura hierárquica do canteiro, bem como os dilemas envolvidos na prática dos trabalhos no setor da Construção Civil. Ele é fruto de uma pesquisa em dois canteiros de obras na RMBH (Região Metropolitana de Belo Horizonte), O canteiro 1, de pequeno porte, pertence a uma pequena empresa especializada em construções destinadas à classe média. Na obra, 22 pessoas trabalhavam quando da realização da pesquisa, número que se alterou no decorrer dos meses, chegando a 12 quando do fim da pesquisa, como acontece normalmente. O canteiro 2, de porte maior, contando com 168 trabalhadores durante a pesquisa, pertence a uma empresa com 30 anos de atividades no mercado e é especializada em empreendimentos de alto luxo, localizados, normalmente, nas regiões nobres da cidade. Ela é considerada, por seus engenheiros e técnicos, como uma das cinco construtoras residenciais mais importantes da cidade.

O processo de aprendizagem no próprio canteiro.
A Construção Civil se organiza, tal como no passado, em especializações estruturadas em torno dos ofícios, os quais se revelam como a base do processo produtivo. Não obstante a existência desses ofícios lembre a organização das corporações de séculos passados, pode-se verificar em todos os subsetores uma clara separação entre concepção e execução, o que torna o trabalho parcelado, muito embora isso não seja tão evidente como na manufatura. Assim, ainda que os trabalhadores executem projetos pautados em conhecimentos técnicos e científicos, esses projetos são “traduzidos”, no canteiro, pelo engenheiro, pelo mestre ou pelo encarregado. Aos trabalhadores, estejam eles nas construções mais artesanais ou mais industrializadas, são destinadas as atividades que dependem de conhecimento prático, de saberes empíricos, de suas habilidades manuais, consideradas a base da atividade produtiva. Existe uma interdependência, entre a ciência e os saberes práticos no processo de trabalho, que pode ser expressa, segundo Vargas (1983, p.197), pela relação entre o engenheiro e o mestre-de-obras. O primeiro possui uma formação acadêmica e detém um conhecimento técnico-científico, portanto, fiscaliza a sua aplicação, sendo o responsável pela administração da obra como um todo. Já o mestre-de-obras e os encarregados, como os demais operários, possuem uma formação no próprio processo de trabalho ou, como se convencionou chamar: on the job. Estes trabalhadores, depois de anos de prática nos ofícios, se encontram no topo hierárquico do coletivo de trabalho e, diferentemente dos demais trabalhadores, desenvolveram conhecimentos e habilidades que lhes permitem traduzir as ordens do engenheiro para o restante dos trabalhadores. Ter a mesma origem social dos demais trabalhadores, conhecer a linguagem ou os costumes destes facilita o trabalho do encarregado ou do mestre-de-obras de “traduzir” as ordens, motivar, persuadir ou convencer os trabalhadores a atender as exigências da empresa.

O setor sempre dependeu, portanto, da qualificação dos trabalhadores de ofício para o desenvolvimento de sua produção, pois a eles cabe, cotidianamente, a correta execução os trabalhos. Sob a liderança do mestre-de-obras se constituem as equipes, se estabelecem os ritmos de execução, as alocações de tempos e o controle do processo produtivo. Apesar da formalização do conhecimento das atividades, sobretudo em relação à concepção do projeto arquitetônico e também aos complementares - como os das fundações e das instalações implantados pela engenharia - o setor sempre dependeu da razão prática dos trabalhadores para a tradução e para a adaptação dos projetos à realidade do canteiro, por meio dos conhecimentos tradicionais incorporados aos ofícios. A apropriação do saber fazer e a racionalização da atividade sob a forma de prescrições, como ocorre em outros setores industriais taylorizados, sempre foram incipientes na Construção Civil.

A forma tradicional de aprendizagem, dentro da Construção Civil, sempre foi o “aprender fazendo”, ou seja, é no próprio canteiro de obras que se conhecem os saberes de ofício. A aprendizagem se constitui, neste sentido, como um processo cumulativo, realizando-se ao longo da trajetória do profissional no mercado de trabalho e através da experiência que o indivíduo adquire nas empresas pelas quais passa. Mesmo que alguns cursos de formação profissional tenham surgido nos últimos anos, é ainda no cotidiano da obra que os aspirantes a uma classificação de oficial podem adquirir as habilidades necessárias. Os próprios profissionais, envolvidos nestes cursos, reconhecem a prática adquirida no trabalho como o fator mais importante no processo de aprendizagem. O setor quase sempre dependeu da transmissão de saberes, no caso dos trabalhadores mais experientes, para formar seu contingente de operários devido, essencialmente, às características específicas do trabalho nos canteiros, que se revelam acompanhadas de uma série de conhecimentos tácitos, de saberes empíricos incorporados à experiência e associados às circunstâncias típicas deste ambiente. Estes saberes são reconhecidos dentro do grupo como um valor e um orgulho para quem o detém. São esses saberes práticos, ligados às “manhas da profissão,” irreproduzíveis pela educação formal, transmitidos pelos mais velhos e consolidados pela experiência, que constituem a base do ofício. São saberes que também proporcionam poder para quem os detém e se tornam de fundamental importância para a compreensão da dinâmica de uma atividade e das classificações hierárquicas dentro e fora do ambiente de trabalho. Com isso, o reconhecimento desses saberes também é feito dentro do canteiro pelos oficiais mais experientes.

Quando se pergunta a algum trabalhador o que é necessário para se tornar um profissional de ofício, as respostas são sempre imprecisas, como: “é preciso ter força de vontade”; “a gente fica observando os trabalhos”; “tem que ter persistência”, entre outras[4]. Todas essas respostas, apesar de nos apresentarem algumas pistas de pesquisas, remetem-nos a uma falsa ideia de que a obtenção das habilidades ocorre progressivamente, ao se combinar a observação dos trabalhos, realizados pelos profissionais mais experientes, ao empenho pessoal de cada um. No entanto, no dia-a-dia do canteiro, as relações envolvidas neste processo de aprendizagem são diversas e não dependem apenas das iniciativas ou, como os próprios trabalhadores preferem, da “força de vontade”. O que se torna importante compreender, na realidade, diz respeito aos mecanismos concretos e às situações em que ocorre esta aprendizagem.

A principal forma de produção de conhecimento do setor ocorre através de um sistema não organizado de transmissão de saberes no canteiro, ou seja, o processo de aprendizagem constitui-se de uma maneira completamente informal, pautado por contingências e descontinuidades. A tudo isso se soma a exigência dos prazos, cada vez mais curtos, para o término das obras, o que se traduz também em uma maior cobrança de rapidez em relação aos trabalhos e em uma alta rotatividade no setor, fatores que dificultam o processo de aprendizagem.

Para as empresas, a aprendizagem dos ofícios é um problema essencialmente dos trabalhadores. Ela deixa para eles se articularem, atribuindo ao empenho pessoal de cada um a aquisição dos saberes de oficio. Os ajudantes são os aspirantes diretos ao processo de aprendizagem. Pela legislação brasileira, não existe a classificação de ajudante, mesmo que este termo seja muito utilizado, nos canteiros, para designar os que auxiliam diretamente os oficiais. Pela Convenção Coletiva do setor, as classificações são três: oficial, meio oficial e servente. Tal estrutura hierárquica é comum a outros setores brasileiros, e não somente à Indústria da Construção Civil, uma vez que também se encontra presente nas usinas de açúcar, como mostra Leite Lopes (1976), e nas indústrias navais e têxteis, como revela Pessanha (1986).

A carteira de trabalho demonstra, de maneira bem clara, a divisão entre os profissionais de ofício e os serventes, sendo que os últimos possuem somente a capacidade de auxiliar os pedreiros, os eletricistas, encanadores etc. Para o servente, ser classificado como oficial significa, além de aumentar o ganho e de escapar das tarefas mais duras do canteiro, também ampliar as perspectivas no mercado de trabalho, seja no informal, através dos chamados “bicos”, seja ao conseguir certa estabilidade em uma empresa para, assim, defender-se da alta rotatividade dos canteiros. À racionalidade prática soma-se o aspecto simbólico da classificação, ou seja, ter um ofício significa ser reconhecido como útil no processo de trabalho, o que traz orgulho para o trabalhador. Classificado, ele compra suas ferramentas de trabalho, fator importante na construção de sua identidade como um trabalhador de ofício, o que lhe garante uma distinção dentro do canteiro. Muitas vezes, os ajudantes e os serventes compram suas ferramentas aos poucos, preparando-se, simbolicamente, para se tornarem um oficial.

As tarefas de servente de pedreiro são as mais duras e insalubres do canteiro: serviços de limpeza, de carregar e de descarregar os caminhões, de preparar argamassa ou concreto, de transportar entulho etc. Por isso, tornar-se ajudante de um oficial é sempre muito desejado. Não que o serviço passe a ser mais leve, pois auxiliar um trabalhador de ofício, o qual, muitas vezes, ganha por produtividade, exige até mais, uma vez que do trabalho do ajudante depende parte dos rendimentos dos oficiais. No entanto, como ajudante, a possibilidade de acompanhar de perto um trabalhador mais experiente pode ser a única chance de aprendizagem, ou seja, tornar-se um ajudante de um oficial constitui-se no primeiro passo para que um servente entre no processo de aprendizagem.

Para os trabalhadores que desejam, realmente, aprender um ofício, o caminho é longo e incerto. Ao se colocarem como ajudantes de um oficial, eles podem concentrar sua observação e até praticar um ofício, em determinados momentos, mas as descontinuidades e a heterogeneidade do processo de trabalho na Construção não permitem que os ajudantes acompanhem somente um oficial. O fato é que, inúmeras vezes, eles são obrigados a atender a vários oficiais, o que faz, por um lado, com que se insiram em muitas frentes de trabalho, as quais ampliam o seu conhecimento geral sobre os variados ofícios, porém, por outro lado, levam-no a ter um aprendizado apenas superficial. Conseguir se tornar um ajudante de oficial não é simples, pois, muitas vezes, além de questões técnicas, o aprendiz depende das relações pessoais com o mestre, com os encarregados e com os próprios oficiais. Mesmo que não haja um aumento formal de salário, os rendimentos dos ajudantes são acrescidos através do chamado “pagamento por fora”, ou seja, de uma pequena contribuição que serve para motivá-los durante os intensos ritmos do trabalho por produtividade. Muitas vezes, é o servente quem alerta o mestre-de-obras[5] de que um determinado oficial está precisando de um ajudante, o que fortalece o seu interesse pelo posto[6]. Como afirma o pedreiro do canteiro 2, João, quando perguntado sobre o que foi mais importante no seu processo de aprendizagem:

“Na verdade, começou essa oportunidade com o pedreiro, porque se o pedreiro não tivesse me dado essa oportunidade para pegar na colher, o mestre-de-obras não ia me ver fazer aquilo ali. Este pedreiro era muito amigo, aí me deixou fazer… também o mestre-de-obras gostava muito de mim, é uma pessoa muito bacana, ele me deu uma força, o engenheiro também, eu não conhecia ele, mas ajudou também (…). Meu irmão, que era pedreiro, também trabalhava nesta firma e me ajudou muito, aí aquilo que eu achava que era difícil para mim ainda, eu via eles fazendo, recorria a eles”.

Percebe-se, na fala acima, que o trabalhador compreende a aprendizagem como uma ajuda, um favor: seja do pedreiro que o escolheu para ser ajudante e, assim, poder praticar, seja do mestre-de-obras que concordou com a sua classificação ou do engenheiro, que a permitiu. Assim, a aprendizagem não é vista como um direito, mas, sim, como um favor concedido, “uma força”. Devido à ausência de um processo institucionalizado de aprendizagem, os acordos pessoais com os oficiais são as únicas possibilidades de se aprender um ofício. Torna-se relativamente comum constatar, nos canteiros, ajudantes que pertencem à mesma família dos oficiais, ou seja, o pai é um oficial e o filho, um ajudante. A aprendizagem, quase sempre, não ocorre de forma explícita, mas se constitui através de uma relação de submissão velada, na qual os insultos dos oficiais, direcionados aos ajudantes, são sempre seguidos das instruções de como fazer melhor determinado serviço. 

Constata-se, nas falas de alguns dirigentes e de profissionais, que a resistência dos oficiais em ensinar os ajudantes existe em função de certa preocupação na reserva de mercado, ou seja, os oficiais, pensando em concorrências futuras, mostram-se resistentes em contribuir para o processo de aprendizagem dos aspirantes a uma profissão. Como afirma Neilor, engenheiro - proprietário da empresa do canteiro 1:

“O peão é muito complicado. O cara tem medo de ensinar. Se a pessoa for um amigo dele, um parente, ele vai ensinar, mas se não for, ele não ensina. Ele tem realmente medo de que aquela pessoa possa vir a tomar o mercado dele. E outra coisa, se o cara, principalmente se o cara não tiver uma amizade maior, começa um a olhar o serviço do outro e falar mal, isso é o que mais tem aqui dentro, peão é f.!”

Quando se analisam as atividades dos serventes, aspirantes à classificação, percebe-se que a aprendizagem do ofício não ocorre unicamente pela observação, apesar de ser esta a primeira forma de se obter compreensão teórica do processo construtivo. As explicações orais são raras e somente observar não se mostra uma forma suficiente para apreender as especificidades técnicas de cada gesto e de cada movimento a ser realizado. Assim, a repetição das atividades é de fundamental importância, pois isso faz com que o trabalhador adquira os “macetes”, a maneira de fazer correta, bem como as habilidades necessárias. É fundamental, para o ajudante, obter do oficial a permissão para praticar ou, como os trabalhadores mesmo esclarecem: “pegar na colher”[7]. Tal permissão, muitas vezes, não é explícita e ocorre em alguns momentos específicos, como no fim do expediente. Nestes momentos, construídos a partir de seu relacionamento com os oficiais, os aspirantes negociam suas possibilidades de praticar as tarefas, sempre envolvidos por permissões tácitas, que dependem de um determinado grau de astúcia em meio às situações ambíguas com as quais os aspirantes se confrontam (ZARIFIAN, 2001).

O fato é que, devido aos contratos de produtividade obter tal permissão torna-se ainda mais difícil, pois o trabalho feito lentamente por um neófito pode significar perda de ganho para o oficial, o que diminui ainda mais as possibilidades de treinamento do ajudante e aumenta a sua carga de trabalho ao servir um oficial em uma cadência acelerada. Como explica o pedreiro de acabamento Jorge do canteiro 1.
“É muito pesado o serviço, o serviço é muito sofrido, você pega um serviço de azulejo igual a esse que eu tô fazendo, eu tenho que fazer alguma coisa, minha preocupação é ali, porque é dali que eu tenho que tirar o meu dinheiro, é dali que, daqui a 15 dias, eu tenho que receber meu dinheiro, eu tenho que me preocupar em não errar. Então você anda com a cabeça muito quente, só com aquela tensão naquilo que você tem que fazer. Então, se for para eu perder tempo para ensinar, não dá, para mim não dá, porque a obra nunca deixa você tranqüilo. Agora há o outro lado: o profissional não gosta de ensinar, porque a maioria dos profissionais gosta que o mercado ande da maneira que está, porque é mais frente de serviço.”

Parte da aprendizagem dos aspirantes a um ofício é adquirida em contextos extra-empresa, nos chamados “bicos” de final de semana. Através de sua rede de contatos, muitas vezes por indicações de colegas, tais aspirantes executam trabalhos de reparação em residências, ou mesmo em pequenas construções, em canteiros artesanais. Nestes momentos, fora da estrutura hierárquica da empresa, os operários possuem maior liberdade de praticar e de se arriscar a executar tarefas, as quais eles observaram na empresa ou mesmo ajudaram um oficial a concluir. Assim, o trabalhador pode fazer um “pouco de tudo” e adquirir um conhecimento geral dos ofícios, mesmo que de forma fragmentada, o que, mais tarde, leva os oficiais, com orgulho, a dizer que, na Construção, fazem “qualquer coisa”. Esta forma “desorganizada” de aprendizagem, muitas vezes, acaba criticada pelos encarregados, que identificam “vícios” que devem ser eliminados dentro das perspectivas dos “procedimentos” dos modelos de qualidade. Os encarregados afirmam que a melhor forma de um trabalhador aprender é praticar dentro dos “procedimentos” estabelecidos pela Construtora.

Alguns ajudantes afirmam ser necessário ter iniciativa para se obter uma chance. Por exemplo: comprar ferramentas, mostrar-se interessado em resolver problemas no cotidiano do canteiro e aproveitar todas as oportunidades oferecidas pela empresa. Também ressaltam a importância com relação à segurança, ao fazerem parte de comitês responsáveis por alertar a respeito dos aspectos gerais sobre a prevenção de acidentes. Dessa forma, os serventes, muitas vezes, esperam alcançar brevemente o posto de oficial ou entrar em uma classificação intermediária, os chamados “meio oficiais”.

É perceptível, ao se observar os ajudantes no dia-a-dia dos canteiros, que eles não perdem a oportunidade de utilizar as ferramentas dos oficiais em momentos de pausa. Nos minutos anteriores ao recomeço dos trabalhos, depois do almoço ou mesmo no fim da jornada de trabalho - quando há sobra de material - os ajudantes se apressam em desempenhar, por alguns instantes, o papel de oficiais, algumas vezes recebendo pequenas orientações, na maioria das vezes cercadas por muito desprezo e ironia em forma de brincadeiras.

Os ajudantes, mesmo que possuam habilidades técnicas e experiência, adquiridas em outras situações de trabalho fora do canteiro, dificilmente encontram oportunidades de demonstrar a sua prática. Na pesquisa, um fato se destacou: a maioria dos trabalhadores de ofício possuía contratos informais e a base dos rendimentos era a produção, o chamado trabalho “a metro”. Neste caso, a responsabilidade pela produção é do oficial e a empresa não oferece ajudantes para ele. Assim, os ajudantes que, por iniciativa individual, em momentos de pausa em seus trabalhos, prestam alguma ajuda, são veementemente repreendidos pela chefia, uma vez que estariam deixando de realizar as suas atribuições para se dedicarem a um profissional que, em tese, é um autônomo dentro do canteiro. Como explica o pedreiro de alvenaria e de acabamento Clério, do canteiro 1.

“Tem uns (ajudantes) que ajudam, tem muita gente aqui que faz serviço de pedreiro, faz serviço de alvenaria, faz chapisco, algum reboco, mas o Neilor (engenheiro - proprietário da empresa 1) não gosta disso. Ele não gosta que servente toma esse tipo de iniciativa. Ontem mesmo ele viu o Wagner (servente) colocando uma cerâmica ali e encheu o saco, ele falou:” O cara tá trabalhando de ajudante, se soltar a cerâmica aí a culpa é de vocês.” Ele não gosta não porque já aconteceu do ajudante tá chapando massa ali junto comigo e ele chegar e chamar a atenção do cara “tô pagando você pra fazer; não tô pagando ajudante pra chapar massa pra você não”. Agora eu não sei se é porque ele não gosta que aprende ou porque a gente tá trabalhando por produção.”

Nota-se que as dificuldades encontradas pelos ajudantes em praticar são muitas vezes impostas pelo engenheiro - proprietário da empresa, receoso dos possíveis erros cometidos por eles. Assim, seja pelo receio da incapacidade, seja por não vincular ajudantes aos trabalhadores por produção, as dificuldades dos iniciantes em praticar ou mesmo em demonstrar suas habilidades se ampliam.

“O cara, se ele quiser aprender, ele vai aprender, põe o material pro cara trabalhar e ali ele fica prestando atenção, ele tem que fazer pergunta, por que alinha desse jeito, por que é o prumo, por que tem que ser assim, mas a maioria deles não pergunta não. Então aí o cara tem oportunidade sim, depende é dele. Mas eu não posso deixar um ajudante fazer um serviço de pedreiro, porque aí ele pode me complicar, a obra tem que andar rápido, eu não posso permitir isso. O canteiro não é escola, não dá pra deixar todo mundo ficar aprendendo e o serviço parar.”


A fala do engenheiro deixa claro que os ajudantes são os únicos responsáveis pela sua formação. Os serventes são considerados, no canteiro, o “pau para toda obra”, ou seja, encontram-se claramente em uma posição subordinada, inclusive a chefia explica, de forma bem explícita, que foram contratados para todos os tipos de serviços e não estão ali para aprender um ofício. Aprender no canteiro significa se submeter à relação paternalista dos mestres e de alguns oficiais, que estabelecem uma cumplicidade no tocante aos anseios dos serventes em aprender uma profissão.

A Construção Civil ainda possui aspectos do trabalho artesanal tradicional, baseados exclusivamente na relação entre mestre e aprendiz. Ocorre, muitas vezes, que os oficiais trabalham em locais algumas vezes isolados do edifício em construção, tendo somente contato com um ajudante para as conversas e brincadeiras e, nesta relação, longe dos olhos da chefia, possibilita-se uma oportunidade única para a aprendizagem. As observações, feitas durante a pesquisa demonstraram uma cumplicidade entre oficiais e ajudantes nos trabalhos de alvenaria, já que foi permitido, aos ajudantes, o auxílio aos trabalhadores por produtividade.

A aprendizagem dos operários, realizada no próprio canteiro - on the job, - na qual a experiência prática possibilita a familiaridade com os métodos e as técnicas, também se processa em relação ao engenheiro, conforme observado, sobretudo, no canteiro 1. Neste sentido, parece haver uma integração, muito mais do que uma apropriação do saber, por parte da engenharia, como uma estrutura de comando da obra, em que o controle do processo de trabalho ainda permanece em grande parte com os operários. Nos ofícios da Construção Civil, os conhecimentos envolvidos nas atividades consistem em construir respostas a partir de elementos precisos para cada situação, em uma demanda essencialmente experimental. Trata-se, portanto, de um conhecimento particular ligado ao indivíduo e a situações específicas, muitas vezes exigido em razão da falta de dispositivos e de soluções disponíveis, resultado principalmente da precariedade do contexto de trabalho. Todos estes saberes tácitos, os quais preconizam muito mais a prática do que a teoria, mais o particular do que o geral, ou seja, implicam em uma demanda indutiva, que envolve uma inteligência prática e astuciosa, correspondem, por sua vez, a um saber de métis, ou seja, a inteligência prática e astuciosa tal como discutido por Détienne e Vernant (2008).

Do reconhecimento à classificação.

O reconhecimento do trabalhador como um Oficial, ou seja, detentor de um ofício (pedreiro, carpinteiro, bombeiro hidráulico, eletricista etc.) é feito na sua carteira de trabalho pela empresa, o que o distingue, a partir de então, dos “meio-oficiais”[8] ou dos serventes e ajudantes. A posse do registro em carteira é uma certificação das habilidades técnicas do trabalhador, abrindo-lhe as portas do mercado de trabalho. O registro, além do peso legal, tem validade semelhante à do diploma obtido na escola, o que é confirmado por Alain Morice (1992, p.36). Para ele, o registro desperta o interesse de grande parte dos trabalhadores e leva o processo de classificação a tornar-se um tema recorrente nas conversas informais entre eles, que destacam os aspectos controversos na obtenção do reconhecimento profissional.

A obtenção da classificação de Oficial ocorre no próprio canteiro. Nos canteiros estudados ela feita pelos encarregados e engenheiros, os quais possuem uma posição central. Nem o setor da Construção Civil nem o poder público produziram um sistema objetivo de regras, o que gera disparidades no reconhecimento das qualificações, de acordo com as épocas e com os locais. 

Se, no topo da hierarquia do canteiro, encontra-se o engenheiro-chefe, o qual dirige, de maneira mais generalizada, a organização técnica, sempre coube aos mestres-de-obras a responsabilidade pela verdadeira condução dos trabalhos no dia-a-dia.  Normalmente, o mestre é um operário experiente, que já passou por toda a hierarquia até chegar ao controle dos trabalhos. Com a implementação dos modelos de qualidade, como observado no canteiro 2, ele vem perdendo sua autonomia, antes quase absoluta, dentro dos canteiros. Além das decisões técnicas, o mestre-de-obras era o responsável pelas contratações e também a única ligação do canteiro com os engenheiros e com os arquitetos, ou seja, com os trabalhadores do escritório. Atualmente, nas grandes empresas que adotam o PBQP-H o poder do mestre passou a ser dividido com os técnicos em edificações, com os engenheiros de qualidade, com os técnicos de segurança etc. No entanto, o poder de avaliar o trabalhador e classificá-lo com a devida autorização do engenheiro, ainda, pertence ao mestre-de-obras ou seu substituto. Manter este poder significa confirmar sua autoridade no canteiro. 

Observa-se, contudo, que no canteiro 2, o processo de classificação dos trabalhadores pertence ao técnico em edificações que, neste caso específico, assume a função do mestre-de-obras tradicional. No canteiro 1, a classificação é feita em comum acordo entre o encarregado e o engenheiro-proprietário. O que se constata, no canteiro 2, é que toda a chefia se orgulha da excelência de sua mão-de-obra, reconhecida como experiente e com um histórico de pouca rotatividade. No entanto, são claras as dificuldades dos operários não só em ascender na hierarquia como também em ter reconhecido, na carteira de trabalho, um ofício ou um novo ofício mais especializado e mais rentável. As razões podem ser várias: pessoais, profissionais ou mesmo corporativas. A parcialidade envolvida nas classificações revela-se sempre como um motivo de queixa dos ajudantes e dos serventes, que atribuem às avaliações aspectos arbitrários e de favoritismo nos julgamentos. As principais críticas se referem à falta de critérios, uma vez que nem o tempo de aprendizagem, nem os cursos de treinamento, desenvolvidos através dos programas de qualidade, surgem necessariamente como critérios para se conseguir uma promoção. Nem sempre os aspectos puramente técnicos são os responsáveis pela classificação. Com o desenvolvimento dos modelos de qualidade, aspectos subjetivos, tais como o grau de envolvimento com a empresa, as demonstrações de fidelidade, a disponibilidade para fazer horas extras, inclusive aos sábados, a capacidade de seguir as prescrições impostas pelos modelos de qualidade e a conclusão dos cursos de qualificação, passaram a possuir um peso significativo neste processo, além das já tradicionais relações pessoais com a chefia.

Na difusão dos cursos de treinamento, promovidos para os trabalhadores do canteiro 2, estava implícito, segundo afirmam esses mesmos trabalhadores, que, após a conclusão, seria imediata a classificação. Assim, os serventes que fizessem os treinamentos para pedreiro de alvenaria receberiam esta classificação na carteira e o mesmo ocorreria com os pedreiros de alvenaria que fizessem o curso para pedreiro de acabamento. No entanto, depois das primeiras turmas terem concluído tais treinamentos e a classificação na carteira não ter se efetivado, diminuiu completamente o interesse dos demais trabalhadores em seguir os cursos, pois, além de serem realizados aos sábados, dia de descanso para alguns, mas de trabalho informal – os chamados bicos - para muitos, não havia mais nenhuma garantia de uma classificação. Como explica a engenheira de qualidade responsável pelo canteiro 2:

“Eles me perguntam: “se eu fizer este curso, eu vou ser classificado na empresa?”Eu digo não, pois o processo de classificação independe do seu curso, você tem que se preocupar em melhorar o seu currículo, você como pessoa, porque vamos supor que amanhã a empresa te dispensa, o seu currículo está rico, “olha esse camarada, ele é um servente, mas ele se preocupou em fazer um curso de qualificação profissional, ele é uma pessoa que está preocupada”. Eu sempre passo isso para eles, porque soltou aí, ou vários soltaram, que a empresa está dando a oportunidade no curso, mas não está classificando. Mas às vezes a pessoa fez o curso, mas não foi classificada porque não tinha competência para ser classificada, porque só a teoria do curso não é suficiente, tem que ter experiência no canteiro.”

Para ela, se apenas o curso não é suficiente para o trabalhador qualificar-se, uma vez que a prática é fundamental, seria nos canteiros que os empregados poderiam, então, praticar. No entanto, as possibilidades de treinamento dentro do canteiro são mínimas, principalmente para os serventes, que não encontram nenhum incentivo em desenvolver os conhecimentos adquiridos nos treinamentos, o que poderia se caracterizar como uma real formação por alternância. O que se percebe é que, de fato, a empresa detentora do canteiro 2 continua dependendo dos mesmos tipos de trabalhadores, apesar das constantes afirmações de que os modelos de qualidade exigiriam um novo perfil de empregado. Como solução provisória ao problema da falta de qualidade dos trabalhos, a empresa procura intensificar a subcontratação, o que nos faz acreditar que esses treinamentos oferecidos servem mais aos interesses da manutenção da certificação ISO 9001 do que realmente a uma formação.

A chefia, representada pelo técnico em edificações, possui práticas refinadas de observação e julgamento dos “aprendizes”: gestos, movimentos, disposição para o trabalho etc. Mas também analisa aspectos ligados ao engajamento do empregado em relação ao trabalho, tais como: presteza em executar uma ordem, a forma como responde às ordens: é solícito, se reclama das ordens dadas, se segue os procedimentos dos programas de qualidade, ou ainda, se é atento às determinações de segurança etc.

Neste sentido, a promoção, em ambos os canteiros pesquisados, depende do julgamento dos chefes. Conseguir uma classificação de Oficial é o objetivo de parte dos ajudantes. O poder de atribuir as classificações e de inserir o trabalhador no processo de formação atende a uma dimensão política dentro dos canteiros, ou seja, o empregado deve demonstrar submissão à chefia, sempre permeada por relações preferenciais cuja conseqüência é, muitas vezes, a própria inadequação entre a classificação e a qualificação real dos trabalhadores.

Neste universo, comandado pelos mestres e encarregados, as dificuldades encontradas pelos ajudantes para obterem uma classificação são enormes. Para serem registrados como oficiais, estes profissionais devem permanecer nos canteiros como a única possibilidade de se adquirir as habilidades necessárias de um determinado ofício. Os critérios de avaliação dos mestres e encarregados são sempre permeados por aspectos subjetivos que, na prática, fazem com que tenham que administrar uma situação peculiar em função da relação paternalista por eles assumida. Helena Hirata (1996) dá uma definição de paternalismo que envolve exatamente as relações vistas nos processos de promoção.

“O paternalismo transforma em princípios hierárquicos a relação de lealdade que se deve aos mais velhos e que os filhos devem aos pais. Este princípio se traduz, ao nível da gestão, por critérios de promoção – as qualidades pessoais, fidelidade e obediência pesam tanto (ou mais) quanto a “performance” profissional; por modos de aprendizagem nas quais os velhos formam os mais novos; e por um sistema de salários no qual as necessidades familiares são levadas mais em conta que a “performance” profissional.”  (HIRATA, 1996.p.45)

Cientes de que as promoções dependem das necessidades momentâneas do canteiro e das pressões dos empresários em limitar as classificações, mestres e encarregados precisam deixar bem claro que estão dispostos a “dar uma força” ou uma “oportunidade” aos aspirantes, mas que isto não depende só deles. Dessa forma, os mestres mantêm sua autoridade através de uma dívida moral que garante a estabilização desses trabalhadores em seus círculos de profissionais, círculo que os mestres precisam manter para os próximos canteiros. Os trabalhadores, conscientes de que se mudarem de empresa poderão adiar ainda mais o seu processo de classificação, uma vez que precisariam começar todas as relações pessoais do zero, preferem se colocar em situação de espera, fortalecidos pelas constantes promessas de que a classificação será dada na próxima obra. Verifica-se, entretanto, que os ajudantes, os quais esperam a classificação para oficial, por exemplo, são utilizados nos trabalhos como Oficiais, com o argumento de que estão em processo de formação.

Processa-se, assim, uma regulação dos futuros profissionais através de critérios de submissão. Muito embora, deva ser registrado que o uso da mão-de-obra em formação possa representar, uma contenção de gastos com a folha de pagamento, segundo Morice (1992), em sua pesquisa sobre o setor da Construção em João Pessoa, o atraso das classificações responderia a imperativos políticos, mais do que econômicos, uma vez que o estabelecimento de fidelidade entre os operários e seus mestres mantém o poder destes últimos.

Caso típico dos atrasos de classificação ocorre com os meio-oficiais, chamados no canteiro de “meia colher”. O meio oficial seria, pensando em uma hierarquia linear, o ajudante do trabalhador de ofício, alguém que estaria formalmente em um processo de aprendizagem. No entanto, as empresas raramente classificam os trabalhadores como meio-oficiais, pois estes possuem um piso salarial um pouco maior do que o de serventes, assim, torna-se preferível mantê-los, durante sua “aprendizagem”, na categoria de servente para evitar custos adicionais. O que se pode observar, nos canteiros pesquisados, são as promessas de classificação para meio-oficial funcionarem como um estímulo para uma mudança posterior para oficial. Assim, o título de meio-oficial surge mais como uma estratégia de motivação do que realmente uma função que se realiza na prática, além de ser uma forma de manter os serventes nos trabalhos de oficial, porém ganhando menos. 

Os argumentos dados aos trabalhadores para a demora na classificação são de vários tipos, entretanto, todos têm o mesmo sentido: o encarregado diz que vai pedir a classificação ao engenheiro e que, na verdade, tudo depende da hierarquia; que o processo de formação ainda não está concluído; que o trabalhador não realizou ou terminou os cursos de qualificação oferecidos pela empresa; ou ainda que a obra encontra-se em fase de finalização e, por fim, o encarregado faz a promessa de que, no próximo canteiro, terá mais tempo para analisar o pedido de classificação. O fato mostra que a prática, recorrente nos canteiros, é a da utilização dos trabalhadores em funções superiores sem promovê-los e remunerá-los de acordo com os valores correspondentes ao ofício realizado. Tal fato fica explícito neste trecho de entrevista, realizada com o pedreiro de acabamento João, do canteiro 2, que relata a sua dificuldade para ser classificado na função que já exercia.

“Lá no outro prédio, antes desse, eu fazia somente acabamento, lá eu fiz todas as salas dos apartamentos, mas aqui eu comecei a fazer esses dias. Mas lá eles não me classificaram como pedreiro de acabamento não, porque o mestre-de-obras não se interessou muito em me dar oportunidade, mesmo eu fazendo. No final eu pedi, e ele disse que veria o que ele podia fazer… Depois me disse que já não estava mais no alcance dele. Eu sempre fiz acabamento aqui, desde 1996 que eu mexo com acabamento. Neste prédio aqui eu estava na alvenaria porque eu fui transferido de lá para aqui, aí eu fiquei na alvenaria. Aí os pedreiros da firma falaram com o técnico que podia me aproveitar porque eu mexia com acabamento, aí me colocaram para fazer um teste, passei no teste… eu estou em fase de classificação ainda. Mas eu já trabalhei em 5 ou 6 prédios deles sempre trabalhando com acabamento.”


Este relato demonstra bem as dificuldades encontradas pelos trabalhadores em seu processo de classificação, ou seja, o profissional entrevistado acima permaneceu onze anos executando o ofício de pedreiro de acabamento e recebendo como pedreiro de alvenaria. As promessas de promoção são constantes e, com isso, os mestres e encarregados mantêm seus poderes sobre os trabalhadores. Para os responsáveis pela gestão da obra, possuir uma rede de trabalhadores que irá segui-los ao próximo canteiro é algo muito importante, principalmente depois da introdução dos modelos de qualidade, uma vez que, depois de treinados na maneira “correta de executar”, tais trabalhadores garantem o desenvolvimento dos trabalhos e solidificam o modelo de qualidade.

Diante de tais dificuldades para se obter a classificação, uma prática comum dos aspirantes a um ofício é procurar uma empresa menor, onde as possibilidades de classificação se tornam maiores. Assim, muitos optam por trabalhar em cidades pequenas, ou em pequenas obras, somente para obter a classificação e depois retornar às grandes construtoras, já nomeados como oficiais. No entanto, sair de uma empresa e tentar uma promoção em outra é, muitas vezes, desencorajador pela dificuldade de se começar do zero o processo, ou seja, de estabelecer relações com novos oficiais, de se tornar conhecido pela chefia, de poder demonstrar seu trabalho. Muitos trabalhadores, por isso, acabam por permanecer em uma determinada empresa, alimentando a esperança da classificação que, com o fim de um canteiro, fica sempre adiada para uma nova obra, esperança que também nunca é garantida.
Outra estratégia é conseguir a classificação através de práticas ilegais, como o chamado “esquentar a carteira”. Esta prática é comum nas grandes cidades e feita, normalmente, por migrantes que vêm à procura de emprego nos canteiros. Interessante ressaltar que pesquisa realizada por nós na França também revelou as práticas ilegais cometidas pelos imigrantes, que alugavam ou falsificavam documentos para se inserirem nas agências de temporários e, por fim, nos canteiros de obras. No Brasil, a prática ilegal se utiliza de carimbos falsos, seja de firmas que não existem ou mesmo daquelas que já deixaram de existir, para informar a qualificação e o tempo em que o indivíduo trabalhou naquela suposta empresa. Com isso, ele pode pleitear o ofício que, na prática, ele já exerce na informalidade. Após conseguir o contrato de trabalho e ter o registro verídico de uma empresa confirmando o seu ofício, o trabalhador “perde” sua carteira, o que apaga o registro fraudulento e evita problemas futuros em seu processo de aposentadoria. Segundo os trabalhadores, em qualquer cidade grande é fácil conseguir tais carimbos, pois existem vários escritórios de despachantes que vendem esse tipo de serviço. A prática ilegal não se encontra associada somente aos serventes, mas a todos os aspirantes a uma promoção, sobretudo os migrantes que, na sua cidade de origem, já possuíam práticas de um ofício da Construção. Estes operários, muitas vezes, trabalharam clandestinamente e, por isso, nunca possuíram uma classificação formal na carteira. Ao tomarem conhecimento das dificuldades de se conseguir a classificação imediata, muitos optam por “esquentar a carteira”, utilizando-se de práticas ilegais para burlar as estratégias dos canteiros de obras.

Considerações Finais
Neste artigo discutimos o processo de formação e de qualificação profissional, assim como o de classificação dos trabalhadores da Construção Civil, subsetor habitacional, a partir do estudo de dois canteiros de obras localizados na Região Metropolitana de Belo Horizonte e tendo como referência os depoimentos de trabalhadores desses mesmos canteiros.

Partiu-se, ainda, das constantes e antigas queixas dos empresários do setor de ausência de mão-de-obra qualificada. Observa-se, entretanto, nos canteiros estudados, assim como apontado por outros estudos, que, entre outros fatores, essa ausência se deve, em grande medida, à desestabilização da mão-de-obra do setor. Encontra-se na Construção Civil e em especial no subsetor Edificações uma ideologia do “provisório”. Muito embora o trabalhador possa passar toda a sua vida no canteiro de obras, numa empresa ou numa determinada classificação, para ele a sua permanência no setor, na empresa ou na classificação é provisória, porque ele está sempre em busca de melhores condições de vida, o que, de modo geral, não encontra no canteiro de obras ou na empresa em que se encontra. O empresário do setor não o vê de forma diferente, ou seja, o operário está na Construção ou na sua empresa, apenas provisoriamente. “Os trabalhadores são descartáveis.” Não há porque, então, investir nessa mão-de-obra.

A perpetuação desse quadro nos leva a crer que, na Construção Civil, a desestabilização da mão-de-obra se constitui o modo próprio de gestão da Construção Civil. Em outras palavras, ao longo do tempo, manter a mão-de-obra desestabilizada parece melhor atender os interesses do setor (baixos salários, mão-de-obra dócil e desorganizada, etc.).

Na atualidade, com as demandas postas ao setor pela introdução dos novos modelos organizacionais ou do próprio PBQP-h, a exemplo do já ocorrido, há décadas, na manufatura, esse modo de gestão do trabalho parece se encontrar em xeque.

Assim, se as queixas relativas à mão-de-obra qualificada na Construção ecoaram mais alto e mais forte que as denúncias das condições de trabalho do setor, a introdução de novos modelos organizacionais nos canteiros de obras, bem como as cobranças constantes de qualidade dos produtos sugerem a necessidade de outro modo de gestão do trabalho.

Consta-se, destra forma e mais recentemente, a preocupação de algumas empresas com a formação e qualificação profissional dos trabalhadores. Aos poucos, empresários do setor, começam a dar maior importância à formação profissional “escolarizada” oferecida, seja por instituições de ensino, seja por entidades de classe e outras. Muito embora os empregadores não descartem a formação on the job, eles vêem na formação profissional “escolarizada” uma formação complementar fundamental, porque ela é capaz de introduzir o trabalhador a conhecimentos técnicos e construtivos, bem como a princípios de relações humanas e sociais, importantes para o seu desempenho profissional na atualidade, bem como corrigir alguns “vícios de desempenho” adquiridos na formação on the job.
As iniciativas da Construção em desenvolver cursos de qualificação são, todavia, ainda incipientes e vinculadas somente a grandes empresas, abrangendo um contingente muito pequeno de trabalhadores. Além disso, esses cursos visam mais à especialização e a adequação a valores dos padrões dos modelos de qualidade do que de fato uma formação profissional.

Não obstante a demanda do setor de um novo modo de gestão, de formação profissional balizada por princípios e fundamentos escolares, os processos de aprendizagem atuais no canteiro de obras e de reconhecimento dessa aprendizagem, são ainda, como apontamos permeados por relações paternalistas e envolvidos por favorecimentos. A formação e a qualificação profissional dentro do canteiro são percebidas pelos trabalhadores como um favor da empresa “uma oportunidade” viabilizada pelos encarregados, mestres-de-obras, técnicos ou engenheiros e nunca como um direito. 

Persiste, ainda, a ideia de que a aprendizagem dos saberes de ofícios é, dentro dos canteiros, um problema exclusivamente dos trabalhadores. Neste sentido, para o aspirante a um ofício, o processo de aprendizagem é lento e incerto envolvido por uma série de contingências que envolvem o pertencimento a uma rede social e familiar, de vizinhança entre outras. As falas dos trabalhadores revelaram, muitas vezes, as resistências deles próprios em transmitir a outros os conhecimentos relativos a seus ofícios. Observa-se neles e de forma muito forte uma preocupação em resguardar o seu mercado. Assim, as dificuldades de aprendizagem se iniciam já na possibilidade de se tornar ajudante de um oficial, em que as probabilidades de adquirir os conhecimentos se tornam maiores.

O processo de classificação, ou seja, de obtenção de um registro na carteira de trabalho como oficial é desejado por muitos trabalhadores. Este registro funciona no mercado de trabalho como um diploma, e garante por lei a possibilidade do trabalhador sempre se inserir no ofício a que foi classificado. Os conhecimentos adquiridos, seja na situação de trabalho, seja na escola, não são, todavia, garantia da obtenção de uma classificação como oficial. A ausência de um processo institucionalizado de aprendizagem e de reconhecimento dos saberes faz com que sejam fundamentais os acordos pessoais com os oficiais e com a chefia. Neste sentido, tanto o processo de aprendizagem como o de classificação são permeados por relações paternalistas em que envolvem preferências pessoais com forte apelo a valores morais de lealdade e de confiança e pertencimento a redes sociais.

Finalmente, diríamos que, a tomar pelos canteiros estudados, não obstante a mudanças pelas quais passa a Construção Civil no país, com exigências claras relativas à introdução de novos modelos organizacionais, novos modos de gestão da mão-de-obra e programas de qualidade, encontram-se, ainda, muito presente no setor práticas e racionalidades tradicionais. 

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* Luciano Rodrigues Costa - Sociólogo (UFMG) Mestre em Extensão Rural (UFV) Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP). Professor titular da Faculdade SENAC Minas. lrodrigues00@yahoo.com.br
** Antonio de Pádua Nunes Tomasi - Doutor em Sociologia. Université Paris VII. Professor adjunto CEFET-MG.  tomasi@uai.com.br

[1] Como constatado também por Jounin (2008) em relação à realidade francesa. Tal como na França, a falta de mão-de-obra qualificada no Brasil não é uma queixa recente.
[2] JOUNIN, Nicolas. Chantier interdit au public. Paris, La decouverte, 2008.

[3] TOMASI, A. A construção social da qualificação dos trabalhadores da Construção Civil de Belo Horizonte: um estudo sobre os mestres-de-obras. Relatório de pesquisa, CNPq, Belo Horizonte, 1999.
[4] Aspecto também constatado por Brochier, (2004), nos canteiros cariocas, em um texto que se tornou referência em relação à observação dos processos de aprendizagem nos canteiros de obras.
[5] Apesar de, nos dois canteiros, os “gerentes” da obra não se denominarem mestres-de-obras, optamos por usar este termo para generalizar  a ação deste tradicional profissional da Construção Civil.
[6] Esta situação também nos parece uma característica dos processos de aprendizagem. A comparação com os estudantes de medicina, Becker (1961), mostra que os aspirantes a um ofício também procuram trabalhar com um profissional que possa lhes ensinar.
[7]Assumir a responsabilidade pela execução parece ser uma característica geral dos processos de aprendizagens, como mostra o caso dos estudantes de medicina descrito por Becker (1961).
[8] Apesar de existir, na Convenção Coletiva, a classificação de meio-oficial, posição intermediária entre a dos serventes e a dos oficiais, nos canteiros pesquisados esta classificação nunca foi encontrada. Assim, normalmente, os serventes recebem diretamente a classificação de oficial, sem passar pela intermediária.